Quando deputado, o presidente nunca escondeu que gostaria de realizar o sonho inconfessável da elite de acabar com o programa
CYNARA MENEZES
Na Câmara, o então deputado federal Jair Bolsonaro defendeu que os beneficiários do Bolsa Família, que agora pretende seduzir eleitoralmente com o Auxílio Brasil, não deveriam nem sequer votar. “Não se pode permitir que qualquer um possa votar. Para votar nas eleições pelo Brasil afora, o eleitor deveria ter, no mínimo, uma carteira de trabalho, um contracheque, um emprego; caso contrário, as eleições são decididas pelos alijados, os chamados excluídos, que darão seu voto pela inclusão no Bolsa Família ou por uma cesta básica”, disse, em 2005.
O atual presidente nunca escondeu, como não esconde, seu desprezo pelos beneficiários do programa, sobre quem afirmou, há duas semanas, ser gente que “não sabe fazer quase nada”. Bolsonaro chamava os pobres que dependiam do Bolsa Família de “ociosos”, “acomodados”, “escravizados pelo programa”, adeptos da “paternidade irresponsável”, pessoas “sem discernimento” e que “não raciocinam”.
“Não se pode permitir que qualquer um possa votar. Para votar nas eleições, o eleitor deveria ter, no mínimo, uma carteira de trabalho, um contracheque, um emprego”, defendia o então deputado Bolsonaro em 2005, após a criação do Bolsa Família por Lula
“A massa eleitoral do PT são aquelas pessoas que vivem do Bolsa-Família, são ligadas ao MST, ao movimento pela redução da maioridade penal, pelos direitos humanos, aos presidiários. Então, todos os vagabundos, mais aqueles que não raciocinam, que pensam apenas com o estômago, apoiam o PT. Não tenho dúvida disso”, afirmou, em 2007.
“O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder. Ou seja, quem está no poder, ao brigar por educação e pelo fim da miséria, deixará de ter votos de miseráveis. E nós devemos colocar, se não um ponto final, uma transição a projetos como o Bolsa Família”, bradou, em 2011, no começo do governo Dilma Rousseff.
Outro programa que Bolsonaro criticava em discursos na Câmara, o Brasil Carinhoso, também foi extinto por ele junto com o Bolsa Família. Segundo o então deputado, o programa, criado por Dilma para dar apoio financeiro às famílias de baixa renda com crianças até 6 anos de idade, “estimula o pobre a ter mais filho. É mais gente ignorante com título de eleitor na mão para votar no 13”.
Quando o PT acusava os adversários, nas últimas eleições, de querer acabar com o Bolsa Família se chegasse ao poder, diziam que era “demonização” ou “teoria da conspiração”. Já a mídia comercial, enquanto o programa recebia prêmios internacionais, fazia questão de apontar supostos “erros”, sobretudo o de não apresentar uma “porta de saída” para os beneficiários e o “uso eleitoreiro”. Ao acabar com o Bolsa Família após 18 anos de existência, no fundo Bolsonaro realizou os sonhos dourados (e inconfessáveis) da elite que a mídia representa.
Bolsonaro chamava os pobres que dependiam do Bolsa Família de “ociosos”, “acomodados”, “escravizados pelo programa”, adeptos da “paternidade irresponsável”, pessoas “sem discernimento” e que “não raciocinam”
Ele sempre utilizou argumentos idênticos contra o programa, cuja existência, defendia, deveria ser “transitório”. Bolsonaro nunca escondeu isso –ao contrário dos tucanos, não se pode acusar Jair de não ter sido sempre transparente sobre o que desejava fazer se algum dia ocupasse o cargo máximo da nação. “Devemos colocar um fim, uma transição para o Bolsa Família, porque, cada vez mais, pobres coitados, ignorantes, ao receberem Bolsa Família, tornam-se eleitores de cabresto do PT”, acusou o então deputado federal Bolsonaro em discurso no plenário da Câmara em fevereiro de 2011.
No entanto, durante as eleições, ele seguiu o exemplo do PSDB e afirmou ser mentira que iria acabar com o programa. “Comigo, o Bolsa Família será mantido. Vou deixar isso claro em um programa de governo. Quero combater essa fake news de que vou acabar com o programa”, disse, em junho de 2018, três anos antes de extinguir o Bolsa Família com uma canetada de sua Bic.
O presidente garante que o Bolsa Família será substituído com vantagens pelo Auxílio Brasil, cuja Medida Provisória enviou ao Congresso. Mas a existência do novo programa está cercada de incertezas: quem disse que o Auxílio Brasil existirá depois das eleições de 2022, como política de Estado e não de governo, se por acaso Bolsonaro tiver sucesso em sua tentativa de usá-lo para se reeleger? “Acuse-os do que você faz, chame-os do que você é”, não é essa a frase falsamente atribuída a Lenin que eles adoram repetir para atacar a esquerda?
O atual presidente nunca escondeu, como não esconde, seu desprezo pelos beneficiários do Bolsa Família, sobre quem afirmou, há duas semanas, ser gente que “não sabe fazer quase nada”. Ao contrário dos tucanos, não se pode acusar Jair de não ter sido sempre transparente
Segundo a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Tereza Campello, em artigo escrito em parceria com a economista Sandra Brandão, o Auxílio Brasil destruiu o melhor do Bolsa Família e não disfarça seu objetivo eleitoreiro. “Quanto vai custar o novo programa? Quais os critérios de inclusão das famílias? Quais estudos justificam adotar nove tipos diferentes de benefícios? Quais os impactos esperados com o novo programa? Nada disto está claro”, dizem as autoras.
Um levantamento feito pelo Estadão/Broadcast também apontou que cerca de 5,4 milhões de beneficiários do Bolsa Família –ou 37% dos atuais 14,7 milhões– não serão contempladas com a promessa de aumento do valor do pagamento feita por Bolsonaro. Pelo contrário, parte dessas famílias pode, inclusive, ter o valor do benefício reduzido.
Os governadores do Nordeste manifestaram sua preocupação com o fim do Bolsa Família. “O Auxílio Brasil não garante a manutenção da segurança de renda para as 39 milhões de pessoas atendidas pelo Auxílio Emergencial, sendo 12,7 milhões da região Nordeste. A meta de expansão anunciada pelo governo federal contempla apenas a fila de espera para o Bolsa Família, que no caso do Nordeste ultrapassa 800 mil famílias”, disse o Consórcio, em carta aberta. “O Auxílio Brasil e o Alimenta Brasil não alteram o quadro de desigualdades e desproteções aprofundadas na pandemia e não se identificam elementos de relevância e urgência que justifiquem a edição da MP 1.061/21.”
“Beira a crueldade terminar um programa social da magnitude do Bolsa Família, programa de transferência de renda considerado modelo no mundo, sem realizar um debate público e amplo com a sociedade e concluir a construção do seu substituto”, criticou a Oxfam Brasil
A Oxfam Brasil também criticou o fim do Bolsa Família. “Beira a crueldade terminar um programa social da magnitude do Bolsa Família, programa de transferência de renda considerado modelo no mundo, sem realizar um debate público e amplo com a sociedade e concluir a construção do seu substituto. Mais ainda quando esse término é feito por um instrumento que tem duração de 60 dias caso não seja aprovado pelo Congresso. Milhões de famílias estão sendo jogadas no limbo sem saber se poderão seguir se alimentando e sobrevivendo”, criticou a ONG.
Nas últimas semanas, diante da incerteza gerada com o fim do Bolsa Família, centenas de pessoas têm formado filas enormes em frente aos postos do Cadastro Único em Estados como a Bahia, Pará, Maranhão e Pernambuco. Na Bahia, para conseguir o atendimento, muitas pessoas dormiram na fila.
“Se hoje em dia eu der 10 reais para alguém e for acusado de que esses 10 reais serviram para compra de voto, eu serei cassado. Agora, o governo federal –o anterior também fazia isto, em parte, mas este agora faz mais– dá para 12 milhões de famílias em torno de 500 reais por mês, a título de Bolsa Família definitivo, e sai na frente com 30 milhões de votos. Realmente, disputar eleições num cenário desses é desanimador. É compra de votos mesmo! Que bom se o eleitor tivesse o mínimo de discernimento!”, dizia Bolsonaro em 2010.
E terá, Bolsonaro. O eleitor terá.
Fonte: Revista Fórum