Um crime contra a saúde, o fim do Mais Médicos, por Luis Nassif

O mais bem sucedido programa de saúde dos anos 2.010, o Mais Médicos, foi destruído pela sanha conspiratória, da qual a Associação Médica Brasileira e o Ministério Público Federal do Distrito Federal foram peças essenciais.

Um programa essencial motivou manifestações contrárias raivosas por todo o país, estimulada por associações médicas, pelo punitivismo irracional do Ministério Público e pelos altos índices de ignorância institucional brasileira.

Ao encerrar o contrato com o Ministério da Saúde, em fins de 2018, os médicos cubanos atuavam em 67 países e mantinham 8.700 médicos no Brasil. Era uma modelo vitorioso de exportação de serviços pelos médicos. No Brasil, ajudaram a levar saúde pública aos mais distantes rincões, de pequenas cidades a comunidades indígenas e quilombolas.

Desde o início, o corporativismo cego do Conselho Federal de Medicina (CFM) previu desastres sanitários enormes.

“O Conselho Federal de Medicina (CFM) condena de forma veemente a decisão irresponsável do Ministério da Saúde que, ao promover a vinda de médicos cubanos sem a devida revalidação de seus diplomas e sem comprovar domínio do idioma português, desrespeita a legislação, fere os direitos humanos e coloca em risco a saúde dos brasileiros, especialmente os moradores das áreas mais pobres e distantes”.

Desde o início grassaram as teorias conspiratórias, alimentadas pela mídia. Conforme manifestação da Associação Médica Brasileira (AMB):

Desde a implementação do Mais Médicos, em 2013, a Associação Médica Brasileira (AMB) levantou suspeitas sobre a legalidade e finalidade do programa do governo federal. Na noite desta terça-feira, 17, o Jornal da Band, em reportagem de Fábio Pannunzio, apresentou diálogos entre a representante da Organização Pan Americana para a Saúde (Opas) com assessores do Ministério da Saúde. O conteúdo é revelador: a criação e implantação do programa, via Medida Provisória votada às pressas pelo Congresso serviria ao propósito escuso de enviar dinheiro para Cuba.

Com base nessas teorias, a AMB ingressou com um pedido de Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIN) contra o Mais Médicos.

Na época, já grassava o anticomunismo cego e radical por todos os poros da mídia e setores do Estado. A corporação mais cegamente radicalizada era o Ministério Público Federal do Distrito Federal. Além de vários integrantes fotografados em manifestações pró-impeachment, o MPFDF foi responsável por algumas das ações mais arbitrárias do período, como a condução coercitiva de cerca de 40 funcionários do BNDES, com cobertura integral da Globo.

Coube à procuradora Luciana Loureiro, do MPFDF as primeiras ações endossando as teorias conspiratórias sobre o programa. Os valores irrisórios pagos – R$ 10 mil mensais por médico -, ao invés de ser considerado um benefício para o pais, foi tratado como indício de irregularidade. Segundo a peça de Luciana, o montante destinado a cada cubano era de “menos de um terço do que (recebiam) os médicos brasileiros recrutados pelo programa”. “Para tanto”, prosseguia a peça, “a execução da cooperação técnica utilizou o artifício da remuneração dos médicos cubanos em patamar muito inferior ao que se aplicava aos médicos oriundos de outros países, embora os montantes de repasses feitos à OPAS tenham sido calculadas com base na suposta remuneração per capita (integral) dos médicos cubanos selecionados”.

Ora, havia um acordo claro:

1. os médicos cubanos prestavam serviços;

2. o Ministério da Saúde pagava a OPAS, intermediária do contrato;

3. a OPAS repassava o pagamento ao governo de Cuba;

4. o governo de Cuba repassava parte para os médicos e assumia o restante como exportação de serviços

A maneira como o governo cubano distribuía os recursos nada mais tinha a ver com o contrato. No entanto, segundo a procuradora, “o acordo com a OPAS não permite saber como foram empregados os recursos repassados pelo governo federal à entidade”. Isto é, “não se pode saber, precisamente, quanto efetivamente cada médico vem recebendo pela sua participação no projeto Mais Médicos”. Esse tipo de contrato, dizia ela, “se mostra francamente ilegal e arrisca o erário a prejuízos até então incalculáveis, exatamente por não se conhecer o destino efetivo dos recursos públicos brasileiros empregados no citado acordo”.

A procuradora trazia a visão conspiratória que, depois, seria encampada por Bolsonaro. Dizia que o contrato servia “ao fim de escamotear repasses de recursos públicos brasileiros a Cuba, em montante superior ao que remuneraria os médicos cubanos inseridos no Programa Mais Médicos, para finalidades desconhecidas”.

Esse viés conspiratório seria amplamente endossado por Bolsonaro. O convênio com a OPAS terminaria em novembro de 2018. Antes que se discutisse sua renovação, Bolsonaro tuitou o seguinte:

“Além de explorar seus cidadãos ao não pagar integralmente os salários dos profissionais, a ditadura cubana demonstra grande irresponsabilidade ao desconsiderar os impactos negativos na vida e na saúde dos brasileiros e na integridade dos cubanos”.https://platform.twitter.com/embed/index.html?creatorScreenName=jornalggn&dnt=true&embedId=twitter-widget-0&frame=false&hideCard=false&hideThread=false&id=1062751821297532928&lang=pt&origin=https%3A%2F%2Fjornalggn.com.br%2Fcoronavirus%2Fum-crime-contra-a-saude-o-fim-do-mais-medicos-por-luis-nassif%2F&siteScreenName=jornalggn&theme=light&widgetsVersion=ed20a2b%3A1601588405575&width=550px

Em 2013, Bolsonaro defendia a proibição de entrada de familiares de médicos cubanos no Brasil. No lançamento do novo programa, criticou a suposta proibição para que os médicos trouxessem seus familiares, “uma questão humanitária que foi estuprada pelo PT” – que, na verdade, nunca existiu.

Com a manifestação do presidente eleito, Cuba decidiu interromper o contrato e levar de volta seus médicos. Estudos feitos pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, em colaboração com pesquisadores da Universidade de Stanford e do Imperial College, de Londres, estimava 100 mil mortos pela saída dos médicos cubanos. O estudo analisou a situação de 5.597 municípios brasileiros, montando projeções de 2017 a 2030.

O futuro Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, endossou a posição do chefe. Sustentou que o programa se caracterizava por improvisações e que seria revisto como um todo. Segundo ele, uma das distorções foi a substituição de médicos em cidades com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto e, portanto, bem atendidas por outros médicos. Segundo os estudos, os principais fatores de óbitos ser~iam doenças infecciosas e deficiências nutricionais.

Disse mais, que o Mais Médico era “muito mais convênio de Cuba e PT”. Mas tinha razão ao criticar a falta de regras de saída para o contrato, permitindo saídas unilaterais dos cubanos.

O programa Médicos pelo Brasil

No dia 13 de fevereiro de 2019 foi lançado, por Mandetta, o programa Médicos pelo Brasil, com amplo destaque da mídia. Anunciava-se que brasileiros preencheriam toda as vagas dos cubanos. Os candidatos poderiam escolher as localidades para trabalhar. Mas o programa era um sucesso total, tendo sido plenamente preenchido por todos os brasileiro, sem necessidade de chamada para médicos estrangeiros. No anúncio, Bolsonaro afirmou que o Mais Médicos tinha como objetivo formar “núcleos de guerrilha”.Leia também:  Com aumento no número de casos, Bolsonaro e Doria se atacam

No lançamento, Mandetta esmerava-se em distribuir conceitos supostamente gerenciais, usando palavras-chave do bom gestor. Segundo ele, o Mais Médicos tinha virado commodity. Agora não, haveria critérios de meritocracia, de pagamento de gratificações para quem escolhesse ir para regiões mais difíceis. E haveria exigências para a efetivação do médico. Nos dois primeiros anos, o médico terá que fazer especialização em saúde da família e da comunidade. O resultado final seria o “melhor time de atenção primária do mundo”. Além disso, Os médicos seriam avaliados “por métodos científicos e indicadores de saúde da população, a partir da valorização da opinião de pessoas e de critérios de desempenho clínico”.

Repetia os mesmos princípios de Paulo Maluf quando instituiu sua política de saúde, no início da terceirização da saúde do município de São Paulo. Foram abertas 18 mil vagas, 13 mil das quais em “municípios de difícil provimento”. Os salários iriam de R$ 21 mil para R$ 31 mil – ou 2,1 a 3,1 vezes o custo final dos médicos cubanos. Não se sabe de manifestações do MPF-DF sobre o custo do programa.

Enfim, o melhor programa, utilizando os melhores critérios de essencialidade, para formar o melhor time de atenção primária do mundo, conceitos com os melhores princípios, para substituir o que Mandetta qualificava de improvisação do Mais Médico. Só faltou um detalhe : médicos se candidatando e aceitando os empregos oferecidos. Eles não apareceram.

Em meados de julho, tentou-se uma gambiarra tentando reincorporar médicos cubanos que haviam permanecido no país.  Em fins de novembro, o caos era total. Apenas na Zona Leste de São Paulo, 45% dos médicos concursados deixaram o posto no primeiro ano, devido às dificuldades de trabalho. A alta rotatividade atingia cidades distantes, zonas rurais e aldeias indígenas. E a mídia descobria o óbvio: os médicos cubanos ficavam porque eram contratados especificamente para aquele trabalho.

Em meados de março de 2020, com a coronavirus a caminho, Mandetta tentou uma gambiarra, um relançamento do programa abrindo vagas para cubanos que decidiram permanecer no Brasil. Estimava-se a necessidade de 5.811 médicos. O novo programa tinha um orçamento calculado em R$ 1,2 bilhão, o mesmo valor pago à OPAS por um programa que estava em perfeito funcionamento. Não havia nenhuma informação sobre quem iria gerir o programa. Não se conhecem manifestações do MPF-DF sobre o novo programa.

FONTE:GGN
FOTO:REPRODUÇÃO