Concentração das fórmulas já desenvolvidas e produção sob regras de mercado geraram maior imunização em países ricos
A pandemia da covid-19 continua aumentando em todo o mundo, apesar da existência de uma série de vacinas que já foram autorizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Assim como a Europa, a América Latina vive uma segunda onda de contágios, com o surgimento de novas variantes do vírus. O Brasil lidera o ranking mundial de novos casos, com uma média diária de 75 mil doentes.
Para especialistas, o fim do isolamento social aliado à demora em realizar campanhas de vacinação em massa são os principais aspectos que favorecem a mutação do novo coronavírus.
Muito se debate sobre a eficácia dos imunizantes, que pode variar de 50%, como é o caso da fórmula chinesa Sinovac, até 95% que promete a vacina da Pfizer/BionTech. No entanto, esses parâmetros foram medidos nos testes clínicos, realizados com amostragens diferentes, em países e épocas do ano distintas.
Para fazer uma comparação linear seria necessário provar os medicamentos em condições equitativas. A OMS considera que o aspecto central é que todas diminuem 100% as probabilidades de hospitalização e de morte por covid-19.
A eficácia das vacinas contra a covid-19 foi estabelecida em testes clínicos, realizados em condições diferentes. / Arte: Michele Gonçalves / Brasil de Fato
A coordenadora científica da OMS, Soumya Swaaminathan, comenta que a primeira etapa das vacinas cumpriu com o que se prometia: reduzir as internações e impedir mortes. Ainda existem cerca de 300 medicamentos em desenvolvimento no mundo.
“O que nós buscamos agora é desenvolver uma nova geração de vacinas que não dependam de dupla dosagem, que possam ser armazenadas em temperaturas mais altas, que possam ser aplicadas em mulheres grávidas, que possam ser aplicadas por spray ou até mesmo por via oral e ofereçam imunização a longo prazo”, esclareceu Swaaminathan.
Na América Latina, Cuba é o único país a testar um medicamento próprio, com cinco fórmulas em testes: Soberana 1, a Soberana 1A, Mambisa, a Soberana 2 e a Abdala – as duas últimas em fase final de testes.
O Brasil anunciou o desenvolvimento da Butanvac nessa quinta-feira (25). O objetivo do Instituo Butantan é ter 40 milhões de doses prontas até o final do ano.
“O grande alvo da vacinação quando você fala de qualquer agente infeccioso é a erradicação da doença. Você cria a imunidade de rebanho, que seria entre 70% a 80% da população imunizada. Com isso, você diminui a circulação do vírus, evitando novas mutações e novos hospedeiros. Dessa forma, você diminui os doentes até que a doença seja completamente exterminada. Isso já aconteceu com varíola, para dar um exemplo, depois de ter matado mais de 300 milhões de pessoas no mundo”, detalha a farmacêutica e uma das criadoras da página Covid Verificado, Anna Cláudia Calvielli Castelo Branco.
Cerca de 12 mil profissionais, técnicos e auxiliares de enfermagem estão infectados ou têm suspeita de infecção por covid-19 no Brasil; 94 vieram a óbito / Miguel Schincariol/AFP
Até o momento, os testes in vitro que confrontaram as vacinas já desenvolvidas com as novas cepas foram positivos. A especialista em imunologia explica, no entanto, que ainda é cedo para tirar conclusões. Somente a vacina da Astrazeneca foi testada em humanos que foram contaminados com a B1, os estudos foram realizados na África do Sul, e em alguns casos o vírus foi resistente ao imunizante.
“O vírus é uma sequência genética que muda de maneira completamente aleatória. A intenção disso é a perpetuação da espécie, como Darwin já apontava. O surgimento de uma mutação que seja resistente é uma questão de probabilidade. A boa notícia é que é muito fácil criar uma vacina para uma nova variante, em cima de uma fórmula base, do que desenvolver uma vacina do zero. É o que acontece com a vacinação anual do vírus Influenza“, destaca a doutoranda do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), Anna Cláudia Castelo Branco.
Concentração
A pandemia imprimiu uma urgência no desenvolvimento científico em âmbito global. Agora, além de desenvolver o medicamento contra a doença, as autoridades sanitárias reiteram: é necessário vacinar.
“A única de forma de conseguir imunização em larga escala é através da vacinação e é por isso que estamos focados no convênio Covax para fazer com que as vacinas cheguem o mais rápido possível a todos países”, destaca a coordenadora da OMS.
O consórcio Covax foi criado pela OMS, pela Aliança para a Vacinação (Gavi) e pela Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (Cepi), para garantir o acesso do imunizante a todos os países e acelerar o seu desenvolvimento e produção.
Na primeira etapa, a perspectiva é oferecer, até o final do ano, 2 bilhões de doses, garantindo a imunização de 20% da população de cada um dos 190 membros do consórcio.
Na segunda fase, a distribuição será priorizada nos países com maior dificuldade de diminuir contágios e ter acesso a materiais de prevenção.
Até fevereiro de 2021, haviam sido vacinadas 335 milhões de pessoas em todo o planeta, o equivalente de 2% da população mundial, segundo a OMS. De acordo com o levantamento do site Nosso Mundo em Dados, hoje a conta já subiu para 489 milhões de doses, mas a divisão é bem desigual.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), as dez maiores potências do mundo concentram 75% dos imunizantes já produzidos.
Ranking da imunização contra a covid-19 em todo o mundo. / Arte: Michele Gonçalves / Brasil de Fato
Em números absolutos, os Estados Unidos lideram a lista, tendo vacinado 130,4 milhões de pessoas, seguido da China com 82,8 milhões e da Índia com 53 milhões de imunizados.
Já em termos proporcionais, Gibraltar é o primeiro do ranking, seguido de Israel e das Ilhas Seychelles, no Oceano Índico.
Por outro lado, 130 nações ainda não receberam nenhuma dose do imunizante, segundo a ONU.
O diretor geral da OMS, Tedros Adhanom, considera que o mundo está diante de um fracasso moral. “Mesmo falando a linguagem do acesso equitativo, alguns países e empresas continuam priorizando negócios bilaterais, contornando a Covax, elevando os preços e tentando saltar para a frente da fila. Isso está errado”, afirmou.
De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), a pandemia empurrou 230 milhões de latino-americanos para a situação de pobreza. / Foto divulgação
Economia x Saúde
Para acelerar a produção e distribuição do imunizante pelo mundo, África do Sul e Índia apresentaram uma proposta de ruptura das patentes dos medicamentos, difundindo sua fórmula de maneira livre para descentralizar sua produção em outros países. O documento foi apresentado em outubro do ano passado à Organização Mundial do Comércio (OMC) e apoiado por 100 países.
Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia se opuseram a quebrar patentes para a fabricação das vacinas em larga escala.
“A quebra de patente poderia ser uma arma para democratizar o acesso. Depois podemos esbarrar em problemas para aquisição de insumos, mas aí é um passo por vez”, comenta a farmacêutica Anna Cláudia Castelo Branco, recordando que em 2007 o Brasil rompeu com a patente de um dos remédios usados contra o vírus HIV.
Do total de US$ 13,9 bilhões, aproximadamente R$ 70 bilhões de reais, investidos mundialmente para desenvolver as fórmulas, cerca de US$ 8,6 bilhões, ou R$ 43 bilhões, foram oferecidos pelos Estados-nação, enquanto as farmacêuticas entraram com US$ 3,4 bilhões (R$ 17 bilhões) e as ONGs com US$ 1,9 bilhão (R$ 9,5 bilhões), de acordo com levantamentos independentes.
Anna Cláudia afirma que as perspectivas são ainda pessimistas em relação a uma possível retomada da normalidade até o final de 2021. Para mudar o cenário seria necessária a articulação de três fatores.
“Isolamento social, tratamento para quem se infectar e vacinação. Essas são as três vertentes para combater uma doença. Mas a situação atual é complexa, por isso precisa de um esforço conjunto, com profissionais de diferentes áreas, para que as três vertentes sejam assumidas de maneira estratégica”, defende.
Considerando que existem 7,7 bilhões de pessoas no mundo, seriam necessárias cerca de 15 bilhões de doses de vacinas para imunizar todo o planeta. Usando um valor médio de US$ 15 por dose (R$ 75), seria necessário desembolsar US$ 225 bilhões, ou mais de um R$ 1 trilhão, para a imunização total – o que representa 70% do que os cinco maiores multimilionários do mundo obtiveram no último ano.
De acordo com levantamento da revista Forbes, Elon Musk, dono da empresa Tesla, aumentou sua fortuna em US$ 110 bilhões (cerca de R$ 550 bilhões) durante a pandemia, enquanto o dono da Amazon, Jeff Bezos ganhou US$ 67,5 bilhões, mais de R$ 330 bilhões.