Dossiê dos institutos Front e Tricontinental mostra que corporações do setor ampliaram seus negócios durante a crise
Grandes corporações do ensino privado tiraram vantagem das restrições impostas pela pandemia de covid-19 no Brasil e usaram a tecnologia para cortar custos e intensificar a exploração do trabalho. Essas são algumas das constatações do dossiê O CoronaChoque e a educação brasileira: um ano e meio depois, publicado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social em parceria com o Front Instituto de Estudos Contemporâneos esta semana.
Segundo os pesquisadores, o termo CoronaChoque refere-se à forma como a covid revelou “a incapacidade do Estado burguês evitar uma catástrofe sanitária e social, em contraste com experiências de inspiração socialista que se mostraram muito mais resilientes.”
A crise sanitária levou à paralisação das atividades presenciais de ensino, com o fechamento temporário das escolas e universidades a partir de março de 2020. Como consequência, foram implementadas de forma emergencial atividades de ensino remoto, muitas vezes sem a infraestrutura tecnológica adequada, sem materiais didáticos e sem formação prévia dos educadores.
É essa realidade que o estudo se propôs a analisar, por meio de entrevistas com Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Margot Johanna Capela Andras, professora de Química, diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS) e integrante da coordenação da Federação dos Trabalhadores de Estabelecimentos de Ensino (Fetee Sul); e Bia Carvalho, pedagoga e militante do Levante Popular da Juventude.
“Essas três pessoas refletem os três olhares distintos sobre o problema da educação que nós tentamos trazer no dossiê”, explica Lauro Duvoisin, pesquisador do Instituto Front.
“O olhar dos pesquisadores da educação, atentos às transformações nesse tema, dos trabalhadores, que foram afetados diretamente pelo ensino remoto e pela precarização da infraestrutura, e dos estudantes, por toda a dificuldade de continuar estudando em um país como o Brasil”.
Duvoisin destaca ainda que o dossiê busca fazer um balanço inicial sobre o impacto da pandemia na educação e aborda os mais diversos aspectos: a aprendizagem, o financiamento da educação, o trabalho dos profissionais de educação, os professores, as políticas públicas, e “especialmente as medidas tomadas pelas grandes corporações privadas no contexto de pandemia”, completa.
Setor privado ganha terreno
O levantamento mais recente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostra que escolas privadas concentram 19% das matrículas do ensino básico no Brasil. Na educação superior, a prevalência das instituições particulares é maior: 76%.
Entre as empresas educacionais mais importantes, estão sociedades anônimas com capital aberto na bolsa de valores, como Cogna, Yduqs, Ser Educacional, Ânima e Bahema.
Elas controlam desde escolas de ensino básico, faculdades e universidades, até escolas de idiomas e cursos preparatórios para concursos, vendendo métodos e plataformas digitais de ensino, além de livros e materiais didáticos por meio de suas editoras.
“Por estarem vinculadas à dinâmica financeira, tais corporações reproduzem os interesses dos investidores, sejam eles pessoas ou fundos de investimentos, e submetendo a qualidade do ensino ofertado à lógica especulativa e às periódicas crises do mercado de capitais”, aponta o dossiê.
“Com o advento da pandemia, essas corporações viram uma oportunidade excepcional para cortar custos e ampliar mercados. (…) Isso se deu em grande parte devido a uma política sistemática de precarização do ensino público liderada pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido)”, completam os pesquisadores.
O estudo ressalta ainda que o Estado brasileiro mostrou-se incapaz de produzir respostas objetivas para um problema que, em outros países, foi enfrentado pelo menos de forma satisfatória.
Ensino remoto agravou desigualdades entre os jovens durante a pandemia / Arte: Tricontinental
Um dos entrevistados, Roberto Leher, cita como exemplo, além da desigualdade e precariedade no acesso a tecnologias de informação e comunicação, a falta de planejamento de retorno para as atividades presenciais assim que o controle da pandemia permitisse. Esse processo, segundo o professor, exigiria investimento na infraestrutura das escolas, para oferecer maior ventilação e adaptar banheiros e bebedouros.
A professora e sindicalista Margot Andras relata que o período coincidiu, em seu estado, com o avanço de grupos privados de outras regiões, que compraram empresas menores do setor.
Além das fusões e aquisições, a pandemia foi caracterizada pelo avanço das parcerias público-privadas, modalidade em que os governos contratam serviços de empresas particulares. Em todo o país, foram centenas de acordos firmados entre estados e municípios com empresas para a implantação de projetos de aprendizagem, programas didáticos e plataformas de ensino.
Outra forma de expansão do setor privado que se consolidou durante a crise sanitária, conforme o dossiê, foi a compra de vagas em instituições privadas por parte do poder público. Ao descaracterizar experiências como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade Para Todos (Prouni), o governo federal lastreou a expansão das corporações de capital aberto na esfera financeira.
“Foi justamente nos anos em que mais recursos públicos foram investidos no Fies e no Prouni que essas empresas mais cresceram”, diz o estudo.
Nas esferas estadual e municipal, abriu-se oportunidade para o setor empresarial por meio de programas de voucher: prefeituras compraram vagas em instituições privadas da educação infantil e do ensino básico em vez de abrirem novas vagas nas escolas públicas.
Para os próximos meses, o governo Bolsonaro estuda vincular legalmente a distribuição desses vouchers aos beneficiários do Bolsa Família.
“Com a depreciação estrutural do ensino público e com sua quase paralisação em decorrência da pandemia, os grupos educacionais privados viram novas oportunidade para abocanhar uma parcela maior do mercado, intensificando processos que destroem a concepção da educação como direito e a transformam em mercadoria”, constatam os pesquisadores do Tricontinental e do Front.
Tecnologia a serviço do capital
As tecnologias de informação e comunicação, ao mesmo tempo que permitiram a democratização do ensino na pandemia, favoreceram os grupos privados. Afinal, mais do que as escolas e universidades públicas, o setor privado já vinha acumulando experiência em modalidades de ensino à distância (EaD) e conseguiu se adaptar mais rapidamente às atividades remotas.
“Para esses empresários, a educação à distância é mais lucrativa, porque permite cortar uma parte dos gastos e acessar um número muito maior de alunos. Então, do ponto de vista da educação como mercadoria, em que eles vão lá vender aulas, a educação à distância faz muito mais sentido”, afirmou Bia Carvalho, em entrevista ao Tricontinental e ao Front.
Não à toa, a pandemia levou ao crescimento das chamadas EdTechs, empresas que desenvolvem ferramentas tecnológicas para a educação.
“As corporações do setor fazem um forte apelo ideológico para mostrar que a educação se encontra em descompasso com o desenvolvimento tecnológico, e que seu futuro depende do uso intensivo de ferramentas digitais. Esse discurso passa a ideia de que a crítica ao atual modelo de ensino à distância é uma postura retrógrada e conservadora”, aponta o dossiê.
Se no ensino superior os cursos EaD já são realidade, empresas do setor aproveitaram a pandemia para abrir o debate sobre ensino híbrido – meio remoto, meio presencial – na educação básica.
Empresas já propõem combinar aulas presenciais e interações virtuais mesmo após a pandemia / Arte: Tricontinental
“O ensino por plataformas digitais, que se tornou uma necessidade emergencial no contexto de pandemia, é apresentado pelo setor empresarial como uma quimera, como se representasse uma nova etapa no desenvolvimento positivo da educação. O CoronaChoque funcionou como uma espécie de catalisador de mudanças que já estavam em curso no sentido de um tipo de educação massificada e estandardizada, em conformidade com as necessidades e os valores do capitalismo dependente brasileiro”, concluem os autores do estudo.
Educadores sacrificados
Mais de 96% dos professores trabalharam no formato home office entre maio e novembro de 2020.
“Está todo mundo esgotado, todo mundo esgotado. Porque a gente não tem mais o nosso ambiente de trabalho delimitado. Temos a sensação de que estamos sempre trabalhando. Acho que isso está acontecendo com todo mundo. A gente está preso no trabalho”, disse a sindicalista Margot Andras ao Tricontinental e ao Front.
Com o home office, o trabalho do educador deixou de estar localizado na escola e deixou de ter uma temporalidade delimitada. O tempo não contabilizado na jornada diária e, portanto, não pago, significa aumento dos lucros para os empresários do setor.
Em paralelo, de março a setembro de 2020, 36 mil vagas de professores foram fechadas, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). O fantasma do desemprego aumenta a angústia dos educadores, empurrando-os para uma realidade de exploração ainda maior.
Faculdades com modalidades de ensino à distância, por exemplo, têm obrigado os professores a gravarem suas aulas e as disponibilizarem nas plataformas de ensino.
“Mesmo presencialmente, essas instituições já colocavam umas 100 pessoas em sala de aula. Agora, à distância, eles fazem uma aula com mil pessoas, do Brasil inteiro. A sala de aula se restringe basicamente a acessar um conteúdo”, relatou Bia Ferreira.
O dossiê do Tricontinental e do Front termina com uma reflexão sobre três questões-chave a serem enfrentadas. A primeira diz respeito à disputa de projeto educacional: para que serve a educação e qual concepção pedagógica é mais adequada para responder às necessidades do país. O segundo aspecto é a urgência da retomada dos investimentos na infraestrutura educacional, e o terceiro é a valorização e qualificação dos professores.
Fonte: Brasil de Fato