O desfinanciamento da saúde, fase avançada do subfinanciamento histórico do SUS, é uma das faces da austeridade fiscal
Muitos especialistas, cujos pressupostos de análise desconsideram a vida real, avaliam que o desajuste das contas públicas decorre tão somente da expansão dos gastos governamentais. E que estes, por definição, seriam sempre ineficientes, enquanto o governo federal mais recentemente tem atribuído essa ineficiência aos governos estaduais e municipais. Mas quando se aborda a gestão da saúde pública, o tom da crítica da ineficiência é ainda mais forte, quando. na verdade o governo federal é que tem sido responsável por um quadro de “asfixia financeira” do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso porque foi acentuado o desfinanciamento a partir da vigência da Emenda Constitucional (EC) 95/2016.
Ou seja, a chamada lei do teto de gastos congelou o piso federal da saúde pública nos níveis do piso de 2017. Desse modo, submeteu as despesas de saúde, como outra qualquer, à regra do teto das despesas primárias (congelado nos níveis de 2016). O desfinanciamento da saúde pública representa, então, a redução de recursos do SUS, que já eram insuficientes para cumprir o preceito constitucional. Pois, segundo a Constituição, “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art.196), cujas ações são de “relevância pública” (art.197) e descentralizadas.
O objetivo deste artigo é demonstrar os efeitos negativos da política econômica da austeridade fiscal baseada tão somente no corte de gastos públicos para buscar o equilíbrio das contas públicas, que teve a EC 95/2016 como instrumento para esse fim, inclusive para promover o desfinanciamento do SUS até no contexto da pandemia da Covid-19. O artigo é uma síntese da nota técnica publicada na 18ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Conjuscs).
a) Faltam recursos orçamentários alocados para o SUS cumprir plenamente os preceitos constitucionais (processo denominado de subfinanciamento). Por exemplo, os gastos públicos consolidados (União, estados, Distrito Federal e municípios) em saúde pública representaram cerca de 4% do PIB – muito abaixo dos 7,8% do Reino Unido, que tem sistema universal de saúde como o SUS. Além disso, corresponderam a cerca R$ 3,80 per capita por dia em 2019, muito menos do que as tarifas de transporte coletivo – e sem contar que há subsídios governamentais para as empresas de transportes em muitos municípios (dados disponíveis aqui); e
b) Houve retirada de recursos federais do SUS com a promulgação da EC 95/2016 (caracterizada como desfinanciamento). Isso fica evidente com (i) a queda do piso federal per capita a preços de 2019 (de R$ 565 por habitante em 2017 para R$ 558 em 2019); (ii) redução da despesa federal empenhada em ações e serviços públicos de saúde (de R$ 594 em 2017 para 583 em 2019); (iii) a queda da participação federal no financiamento para 42%, menor do que a soma de 58% da participações estadual e municipal no mesmo período; e (iv), em 2020, se considerarmos as despesas federais realizadas com saúde sem os recursos alocados para o enfrentamento da covid-19, o governo federal investiu menos para o financiamento do SUS do que em 2019.
É oportuno lembrar que o governo federal não programou nenhum centavo para enfrentamento da covid-19 no Projeto de Lei Orçamentária da União para 2021. Desse modo, significa dizer que nenhum centavo foi programado para transferências do Fundo Nacional de Saúde para os estados, Distrito Federal e municípios para esse fim. E, pior do que isso, nenhum objetivo e meta para esse fim constou da revisão do Plano Nacional de Saúde 2020-2023 submetida ao Conselho Nacional de Saúde. Aliás, em reunião realizada em maio deste ano, o CNS reprovou esse plano por essa omissão e outros problemas.
Os recursos para enfrentamento da pandemia estão sendo alocados no orçamento de 2021 a “conta-gotas”, por meio de créditos extraordinários. Mas esses créditos somente poderiam ser utilizados para despesas “emergenciais imprevistas”. E quem não sabia que a pandemia da covid-19 continuaria em 2021?
Essa situação analisada anteriormente pode ser comprovada pela queda das transferências do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos de Saúde dos Estados e Municípios, inclusive para o financiamento das ações de enfrentamento da covid-19 – respectivamente, queda de 17% e 63% no primeiro quadrimestre de 2021 em comparação ao terceiro quadrimestre de 2020, conforme avaliação feita pela Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS) do Relatório Quadrimestral de Prestação de Contas do Ministério da Saúde.
O Boletim Cofin/CNS 2021-07-27, de 29 de julho de 2021, apontou que dos R$ 38,6 bilhões existentes para enfrentamento da covid-19 no orçamento do Ministério da Saúde a maior parte (R$ 21,6 bilhões) foi dos saldos de dois créditos extraordinários de 2020 reabertos em 2021 exclusivamente para vacinas. E a menor parte (R$ 17,0 bilhões) correspondeu a créditos extraordinários abertos em 2021 (o primeiro somente em fevereiro, de apenas R$ 2,9 bilhões, mesmo diante do crescimento de casos e mortes desde janeiro).
Por fim, reportagem da Folha de S.Paulo de 29 de julho de 2021 informa que as emendas parlamentares destinadas para as ações de enfrentamento da Covid-19 no valor de R$ 666 milhões ainda não tinham sido empenhadas, o que consta também na Tabela 4.1 do citado Boletim Cofin/CNS 2021-07-27, o que significa dizer que os efeitos da EC 95/2016 (do teto de gastos) aprovada pelo Congresso Nacional está atingindo também os parlamentares, alguns responsáveis por essa medida. Assim, está nas mãos do Congresso Nacional agora revogar a EC 95/2016: votar e aprovar a PEC 36, que está tramitando no Senado Federal.
O Conselho Nacional de Saúde aprovou a Recomendação Nº 017, de 26 de julho de 202, que indicou medidas corretivas de gestão para o Ministério da Saúde, que devem ser encaminhadas ao Exmo. Sr. Presidente da República nos termos da Lei Complementar nº 141/2012.
Foram sete medidas indicadas como decorrência da avaliação do Relatório Quadrimestral de Prestação de Contas do Ministério da Saúde referente ao 1º quadrimestre de 2021, a partir da constatação de que houve nesse período o descumprimento total ou parcial das diretrizes para o estabelecimento de prioridades da gestão para 2021, as quais foram aprovadas pelo CNS por meio da Resolução Nº 640, de 14 de fevereiro de 2020, resolução essa também homologada pelo então Exmo. Ministro de Estado da Saúde, Luís Henrique Mandetta.
O Tribunal de Contas da União (e o Ministério Público de Contas) e o Ministério Público Federal poderiam adotar medidas para fazer o gestor federal cumprir imediatamente essa e outras recomendações e resoluções do Conselho Nacional de Saúde – instância deliberativa do Sistema Único de Saúde no âmbito federal – em prol da garantia do preceito constitucional de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”.
Francisco R. Funcia, economista, é secretário de Finanças de Diadema. Mestre em Economia Política pela PUC-SP, pesquisador do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Conjuscs), onde é docente nas faculdades de Economia e Medicina. É vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) e consultor técnico da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS).
Fonte: Rede Brasil Atual