Presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica fala sobre a inação do mundo e do Brasil diante da destruição da floresta
Em 1970, o general Emílio Garrastazu Médici, então presidente da República, participou de uma solenidade no município de Altamira (PA), que marcou o começo da construção da rodovia Transamazonica.
Jornais da época afirmam que o presidente assistiu emocionado à derrubada de uma árvore de 50 metros, para dar início a uma pretensiosa ligação única entre Norte e Nordeste, e que cortaria toda a Amazônia.
Na ocasião, o jovem padre austríaco Erwin Krautler presenciou estarrecido os aplausos de autoridades, enquanto a castanheira tombava. “Até hoje não esqueço. A árvore milenar tombou com aquele estrondo, e o presidente e a comitiva bateram palmas. Será que é isso? Derrubar uma árvore para dizer – agora vamos começar?”
Mais de 50 anos depois, Dom Erwin é hoje bispo emérito do Xingu, no Pará, e presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil). Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, ele falou sobre o torpor de observar o avanço da destruição nessas cinco décadas, a falta de ação concreta de todo o mundo e a pá de cal que o governo de Jair Bolsonaro (PL) pode representar. O missionário fez um apelo por educação e informação sobre o bioma e por mais amor pela floresta.
Dom Erwin também comentou os acordos definidos na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 26), “Eu tenho a sensação de que toda essa conferência caríssima, que gastou milhões, empurra mais uma vez a questão com a barriga”.
Líderes de diversas nações assinaram, por exemplo, o compromisso de acabar com o uso de carvão para geração de energia. A meta, no entanto, tem prazo final somente em 2040. Já o governo brasileiro se comprometeu a cortar emissões de gases em 50% até 2030 e a zerar o desmatamento ilegal no Brasil em sete anos.
“O que vai sobrar até lá?”, questiona Dom Erwin. Leia a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: A COP 26 traz uma série de resoluções com as quais as nações se comprometeram. Como os senhores da REPAM Brasil – que lidam com o bioma amazônico, um dos mais importantes do planeta – receberam essas resoluções? Elas são suficientes?
Dom Erwin Krautler: Definitivamente não. Aliás, eu não esperava tanta coisa, mas eu esperava um pouco mais. Eu tenho a sensação de que toda essa conferência caríssima, que gastou milhões, empurra, mais uma vez, a questão com a barriga. Esse negócio de prazos, sempre adiantando os prazos, é terrível.
Eu comparo a COP 26 com o planeta na UTI [Unidade de Terapia Intensiva]. Fica se falando, pensando o que se pode fazer, mas no fim das contas a gente inventa algumas medidas paliativas. Medidas paliativas não salvam o planeta Terra. Eu estou falando não apenas do planeta como um todo, estou falando também da Amazônia. A Amazônia eu conheço, estou lá há 56 anos. Eu sou testemunha de que muito já mudou nessas cinco décadas.
Para mim, que vivo na Amazônia, a mudança climática já aconteceu. Porque se eu comparo Altamira e Xingu [no Pará] dos anos 1960 e do século passado com os dias de hoje, a coisa é óbvia. Naquele tempo ninguém falava em climatização, mas hoje não tem hospital, hotel escritório ou mesmo casas particulares sem ar-condicionado. Mudou. Na medida em que começou a Transamazônica, o desmatamento começou, aumentou e continuou até os dias de hoje.
Que pontos definidos na Conferência mais preocupam?
De modo especial, eu falo sobre o acordo do desmatamento. Me pareceu uma piada de mau gosto, um desaforo. O que vai sobrar? Eu fiquei muito desanimado, decepcionado. Será que não tem saída? E ainda temos um presidente que não tem o que fazer e diz que a Amazônia não queima, porque é uma floresta, e o clima é úmido. Tantas queimadas que eu já assisti, tantas que continuam e aumentam. A situação é séria. Não podemos brincar. O futuro dos nossos povos está em jogo.
Qual é o papel do governo brasileiro nesse atraso? Dá para confiar em algum comprometimento dessa gestão, pela experiência do senhor?
Eu não vejo uma saída com esse governo. Esse governo tem uma visão da Amazônia equivocada. A Amazônia é considerada colônia. Uma colônia de onde a gente vai tirar até sangrar, até ferir e até acabar. Colônia seringueira, colônia madeireira, colônia energética, última fronteira agrícola, enfim, é sempre colônia o que vão buscar.
Esquecem que tem gente lá, que vive e tem que viver. Os ancestrais da Amazônia têm direito de ter o meio ambiente sadio, isso não é mais garantido. Junto com a derrubada e o desmatamento vem a garimpagem. O que sobra nesses garimpos é uma paisagem lunar. A gente pensa que está naquelas crateras da lua.
Nós somos responsáveis. Essa geração, o Brasil de hoje, com seus governos, seus governantes, são responsáveis pelo bem estar e a possibilidade de as futuras gerações poderem viver. A Amazônia é um assunto que diz respeito a todo o Brasil – e não apenas – ela é de nove países, mas o Brasil abrange a maior parte e a maior responsabilidade cabe ao Brasil.
Penso que uma conscientização desde o ensino fundamental até as universidades talvez traga essa mudança. O povo, muitas vezes, ainda está pensando que a Amazônia é inexaurível. O que não se conhece não se ama. Se você não conhece a Amazônia, talvez não tenha nem interesse, mas esse é o grande mal.
A Amazônia é patrimônio da humanidade. Ela tem uma função reguladora do clima planetário. O Brasil não pode conviver com essa desgraça de colocar a Amazônia na beira do abismo.
Para o futuro, na prática, o que nós deveríamos estar fazendo agora para evitar uma tragédia?
A primeira coisa urgente é a sensibilização. O povo tem que saber. O povo ainda está pensando que o governo vai resolver tudo. Nós temos que entrar em uma tremenda campanha em favor do bioma da Amazônia.
Temos que conscientizar o poder. Temos eleições à vista, temos que conscientizar deputados e senadores para olhar a Amazônia com amor. Esse povo não ama a Amazônia? Não tem amor pela Amazônia? O que não se ama, se coloca de escanteio.
Na própria igreja, o papa Francisco escreveu a Encíclica Laudato Si. Eu estive lá com ele e pedi, insistentemente, que, se fosse escrever uma encíclica sobre ecologia, não poderíamos esquecer a Amazônia e os povos indígenas.
A igreja também tem que assumir. Todos os partidos, todas as pessoas, independentemente de raça, de credo religioso, todos os brasileiros e as brasileiras que têm amor pela sua pátria, que de fato mudem a cabeça. É um assunto da humanidade, um assunto do Brasil.
Edição: Geisa Marques
Fonte: Brasil de Fato