O desenvolvimento da vacina contra a dengue do Instituto Butantan é prova da competência tecnológica do instituto e demonstra que a ciência brasileira responde aos anseios da sociedade quando têm os recursos necessários. Leia no artigo do dr. Drauzio.
O Instituto Butantan desenvolveu uma vacina contra a dengue que orgulha a ciência brasileira.
No início dos anos 1980, a dengue era uma doença negligenciada: não havia grandes epidemias nem interesse em estudá-la. O panorama foi esse até a comunidade científica se convencer de que o aquecimento do planeta era uma ameaça real e que a proliferação de mosquitos associada a ele poderia causar epidemias pelo mundo.
Essa possibilidade motivou vários virologistas a procurar uma vacina contra a dengue, virose causada por quatro sorotipos próximos, mas distintos do ponto de vista imunológico: os sorotipos 1, 2 3 e 4. As implicações clínicas dessa diversidade são relevantes: a infecção por um deles não confere imunidade cruzada contra os demais. Assim, podemos ter a doença até quatro vezes.
A disparidade entre os vírus criou um desafio: se os quatro sorotipos provocam respostas imunológicas diferentes, como obter proteção contra todos com uma única vacina?
Um dos cientistas que se interessaram por esses problemas foi Steven Whitehead, virologista dos National Institutes of Health (NIH), que criou culturas dos quatro vírus mantidas a menos 70º Celsius, à procura de cepas mutantes atenuadas que levassem a um imunizante eficaz contra cada um deles, para numa segunda etapa juntar os quatro numa vacina única, tetravalente.
Àquela altura, entra em cena um dos maiores nomes da ciência brasileira: o saudoso professor Isaias Raw, que trazia em seu currículo a demissão da Universidade de São Paulo durante a ditadura, por atividades supostamente subversivas que, nós, seus alunos jamais testemunhamos.
Com a queda dos militares, conduzido à função de diretor do Instituto Butantan, o professor Isaias percebeu o potencial científico das pesquisas de Whitehead, algumas das quais realizadas em parceria com Anne Durbin, da Universidade Johns Hopkins, que realizou um pequeno estudo fase 1 com uma vacina monovalente que demonstrou eficácia. Com base nesse resultado foi feito um novo fase 1, dessa vez com uma tetravalente
Foi Isaias Raw quem celebrou os acordos com o NIH, para a cessão de direitos e do acesso aos vírus que foram trazidos para o Butantan, onde foram cultivados e liofilizados, passo fundamental para que a futura vacina pudesse ser transportada sem a necessidade de congeladores especiais.
Quando o imunologista Jorge Kalil assumiu a diretoria do Butantan, a vacina recebeu o impulso que faltava: o investimento para iniciar um estudo fase 2, com 300 voluntários saudáveis, com a finalidade de avaliar a resposta imunológica contra os quatro sorotipos.
Em 2016 começou o estudo fase 3. Os primeiros participantes estavam na faixa dos 18 aos 60 anos. Demonstrada a segurança nesse grupo, veio a faixa dos 7 aos 18 anos, e só depois a dos 2 aos 7 anos, a que corre mais risco de apresentar as formas mais graves. Esses cuidados são necessários, mas tornam os testes mais demorados.
Foram 16.235 participantes reunidos em 16 centros de 15 estados brasileiros. Receberam a vacina 10.259 deles, enquanto 5.976 tomaram uma injeção de placebo, substância inerte.
Depois de dois anos de acompanhamento, praticamente 80% dos vacinados sem exposição prévia aos vírus ficaram protegidos. Nos que haviam tido dengue no passado, a proteção aumentou para 89%.
A proteção contra os vírus 3 e 4 não pode ser avaliada porque no período não houve casos provocados por esses sorotipos. Não há razão, entretanto, para supormos que a eficácia seria mais baixa com eles.
Dispomos de duas vacinas já aprovadas por agências internacionais e pela Anvisa: QDenga, produzida pela japonesa Takeda, e Dengvaxia, da francesa Sanofi. A vacina do Butantan está para ser submetida ao crivo da agência; se tudo correr conforme esperado, estará disponível no próximo ano.
Ela tem várias vantagens: 1) É administrada em dose única. 2) Induz a formação de anticorpos protetores contra os quatro sorotipos do vírus, de forma equilibrada. 3) Protege pessoas de 2 a 59 anos. 4) Protege os que já tiveram e os que nunca tiveram dengue.
O desenvolvimento dessa vacina é prova da competência tecnológica do Instituto Butantan, demonstra que temos pesquisadores de alto nível e que a ciência brasileira responde aos anseios da sociedade sempre que dispõe dos recursos necessários.
FONTE: PORTAL DR DRAUZIO VARELLA