Lula vetou trechos da nova Lei dos Agrotóxicos que davam poder absoluto ao Ministério da Agricultura
Deputados e senadores podem decidir nas próximas semanas se derrubam ou mantêm os vetos do presidente Lula à nova Lei dos Agrotóxicos, aprovada pelo Legislativo em novembro.
A lei – conhecida como “PL do Veneno” por afrouxar as regras de uso de agrotóxicos – tira a autoridade do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) nas decisões relativas a agrotóxicos, e concede poder absoluto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para aprovar as substâncias.
A Lei dos Agrotóxicos (Lei 14.785/2023) é defendida por multinacionais do agronegócio, mas criticada por pesquisadores, médicos e cientistas, pois representaria uma ameaça para o meio ambiente e a saúde dos brasileiros. Técnicos do Ibama e da Anvisa também já se manifestaram contra a proposta.
“Se deixar a decisão só na mão do Ministério da Agricultura, aí que a gente não vai ter garantias que as questões de saúde e de meio ambiente foram analisadas de forma adequada e por profissionais competentes para isso”, afirma Karen Friedrich, pesquisadora da Fiocruz e membro do GT Saúde e Ambiente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
Na contramão de cientistas e ambientalistas está a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), braço institucional da chamada bancada ruralista no Congresso. O grupo afirma ter maioria para derrubar o veto presidencial e conceder a palavra final ao Mapa. Para isso, são necessários os votos de 257 deputados e 41 senadores – só a FPA tem 324 deputados e 50 senadores.
A derrubada dos vetos e o estabelecimento do Mapa como grande centralizador das decisões sobre agrotóxicos têm o apoio de organizações como a Aprosoja, Conselho Científico Agro Sustentável e CropLife Brasil. Esta última representa as maiores empresas produtoras de agrotóxicos. “A liderança do Mapa garantiria maior previsibilidade para o setor privado e eficiência para a administração pública”, afirmou a representante das empresas em nota divulgada em seu site.
Para os especialistas ouvidos pela Repórter Brasil, o Ministério da Agricultura não tem capacidade de assumir sozinha a análise dos agrotóxicos. O papel da pasta em recentes avaliações de agrotóxicos seriam uma mostra desse problema.
Durante a reanálise do paraquate, agrotóxico considerado mortal para humanos mesmo em baixa quantidade, o Mapa se juntou à força-tarefa formada pelas empresasprodutoras do agrotóxico e solicitou à Anvisa não proibir o produto.
Estudos comprovaram que a exposição prolongada à substância, utilizada principalmente no plantio de soja, pode gerar mutações genéticas e até doença de Parkinson. O pesticida chegou a ser proibido de forma temporária por cerca de dois meses em 2017, mas só foi tirado definitivamente do mercado brasileiro em 2020, apesar do intenso lobby do agro.
“O Ministério da Agricultura historicamente é controlado por setores do grande agronegócio e tem uma clara vocação em defender as empresas de agrotóxicos”, diz Alan Tygel, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
Procurado, o Mapa não respondeu até a publicação da reportagem.
Agro x abelhas
Para os especialistas ouvidos pela Repórter Brasil, a tendência do ministério é adotar uma abordagem voltada para a eficiência agronômica dos produtos, sem observar os impactos ambientais e de saúde.
Foi o que se viu em 2021, quando o Ibama impôs uma série de restrições de uso ao imidacloprido, agrotóxico prejudicial às abelhas. Mais uma vez, o Mapa sugeriu medidas menos restritivas e favoráveis à indústria.
Segundo parecer técnico divulgado à época, parte das limitações propostas pelo órgão ambiental não era necessária e poderia ser resolvida por meio da diminuição das doses de aplicação. O Ibama, entretanto, seguiu suas próprias recomendações e restringiu o uso da substância.
“Se o Mapa assume os papéis dos outros órgãos, obviamente, essas funções não serão bem executadas, porque serão realizadas por profissionais da agronomia que não têm formação para a análise de riscos à saúde humana ou ao meio ambiente”, aponta Friedrich.
No caso do tiametoxam, outro agrotóxico letal às abelhas restringido pelo governo em fevereiro, o Mapa sequer tornou pública suas considerações, impedindo o acesso ao seu parecer.
A Repórter Brasil questionou a pasta via Lei de Acesso à Informação e por meio da assessoria de imprensa, mas o ministério defendeu a ocultação do documento, afirmando se tratar de um parecer preparatório.
Para Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, a nova Lei dos Agrotóxicos já garante maiores poderes ao Mapa ao permitir, por exemplo, que ele decida sobre os novos agrotóxicos que serão vendidos no mercado brasileiro. “O que o presidente vetou é importante e tem que ser mantido. A lei já é bem ruim, mas se o conteúdo voltar, ela fica muito pior”, avalia.
Pressão e desinformação
A força do lobby em Brasília também preocupa especialistas. Ex-funcionários do Ibama e da Anvisa relatam ter sofrido pressão do Mapa e de empresas para manter o uso de agrotóxicos em reavaliação.
“Quando se tem o resultado que pode comprometer o uso da substância, [as empresas] alegam que há erro na metodologia dos estudos, nas análises, desculpas tão absurdas que chegam a ser ridículas”, afirma uma ex-servidora do Ibama, que pede para não ser identificada.
Segundo ela, nestes casos em que um agrotóxico pode ter seu uso limitado, o Ministério da Agricultura acaba corroborando a posição das empresas e pressionando o Ibama para postergar as conclusões – uma forma também de ganhar tempo para o produto continuar no mercado.
A posição do ministério sobre a pulverização aérea de agrotóxicos chamou atenção dos especialistas por possível “desinformação”. Apesar de estudos provarem que a dispersão de agrotóxicos pelo vento, chamada de “deriva”, gera riscos à saúde e ao meio ambiente, o Mapa defende a pulverização como método seguro. A pasta inclusive nega a existência da deriva.
Em uma seção do site com perguntas e respostas, o ministério escreve que a perda de agrotóxicos “não é verdade”. “[Isso] facilmente se comprova pela seguinte lógica: obviamente nenhum agricultor aceitaria jogar fora parte do produto comprado para proteger sua lavoura, pois isso elevaria ainda mais os custos de produção, que já são expressivos. Do contrário, a aviação agrícola já não existiria (e não completaria seus 100 anos de atuação em 2021), simplesmente porque os produtores não contratariam seus serviços”.
Apesar das afirmações, a própria Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), ligada ao Mapa, já apresentou estudos que comprovam a periculosidade da pulverização aérea. Mesmo com calibração, temperatura e ventos ideais, a empresa diz que 32% dos agrotóxicos pulverizados são retidos nas plantas, outros 49% vão para o solo e 19% se espalham pelo ar.
“A resposta do ministério é muito reducionista e não tem fundamento técnico. Isso abre uma janela para a gente questionar as posições técnicas e científicas do Mapa sobre a pulverização aérea”, espanta-se Friedrich.
Relação antiga
A aproximação do agronegócio e do Ministério da Agricultura é antiga e ultrapassa o alinhamento dos governos à direita ou à esquerda. Durante o governo Bolsonaro, por exemplo, dois ex-presidentes da FPA assumiram a liderança da pasta. No governo Lula não foi diferente.
O atual ministro,Carlos Fávaro, foi um dos fundadores da FPA, além de ex-presidente da Aprosoja-MT (Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso), uma das principais associações do setor.
Fávaro também é produtor de soja e atuou pessoalmente nas negociações entre o governo federal e a FPA em prol do PL do Veneno. O ministro até se licenciou do cargos para retomar a cadeira de senador e votar a favor da nova Lei dos Agrotóxicos.
O Mapa chegou a publicar uma nota favorável às mudanças na legislação, indo na contramão de organizações como Ministério Público Federal, Anvisa, Ibama e a Organização das Nações Unidas, que se manifestaram contra o projeto. O texto utilizou argumentos similares aos do agronegócio, afirmando que a nova lei iria modernizar a legislação e dar maior celeridade aos processos de avaliação de agrotóxicos.
“Que nós possamos encerrar esse capítulo e dar aos produtores e produtoras brasileiras a oportunidade de se modernizar, ser cada vez mais competitivo e continuar alimentando o Brasil e o mundo com segurança e tranquilidade”, discursou o ministro no Senado.
Essa modernização, no entanto, é questionada por especialistas e fontes próximas aos órgãos regulatórios. “Nós estamos flexibilizando os parâmetros de proteção à saúde e ao ambiente. Isso é ser moderno?”, questiona Fernando Carneiro, ex-funcionário da Anvisa, pesquisador da Fiocruz Ceará e membro da Abrasco.