Esses legisladores ainda têm, lamentavelmente, maioria ou iniciativa institucional volumosa e podem certamente ainda produzir retrocessos
A PEC do estupro e a proibição da esmola selam a exaustão da agenda fascista
por Ion de Andrade
A PEC do estupro não foi uma derrota qualquer para a extrema direita.
Ela veio carregada de conteúdos simbólicos complexos que exigiram da sociedade brasileira que a rejeitou com máxima veemência uma maturidade política e moral digna das sociedades mais avançadas.
A rejeição alcançou maioria em todos os segmentos da sociedade, entre pobres e ricos, na direita e na esquerda, ou entre católicos e evangélicos.
O problema da PEC do estupro para a extrema direita é que ela é mais do que uma derrota política e moral, ela é, de fato, uma chave de leitura para interpretar os outros projetos de lei da pauta que quer nos levar ao Afeganistão.
O seu peso e a sua profundidade permitiram um exercício de cidadania, uma reflexão e uma indignação que exigiram para cada brasileira e brasileiro um diálogo não somente interior como também cosmológico ou seja com o Deus da cristandade (para além das igrejas) com o qual essa maioria dialoga em suas orações (o que me inclui) para detectar nesse contexto de dificuldade ético-moral máxima o que seria o mais justo seguindo-se a essa opinião formada, não a dúvida, mas a ira da indignação. Parabéns ao Brasil!
Noutra ponta, a decisão do STF de definir, e se tratou só disso, os limites físicos (40 gramas) para separar o traficante do usuário de maconha, evitando a métrica racista da polícia militar (a mesma que vai ensinar ética nas escolas cívico militares…), apesar de ter sido criticada pelos barítonos do legislativo, teve excelente repercussão na sociedade como um todo sendo recebida com verdadeiro alívio. Tanto que, pelo menos até aqui, a reversão disso não foi novamente pautada e penso que as discussões sobre isso venham a ser enviadas às calendas gregas.
Da mesma forma o projeto de lei da Câmara Municipal de São Paulo que, na prática, proíbe a esmola informal, aquela que faz com que muita gente peça a quentinha dos restos no restaurante para entregar ao primeiro sem teto que cruzar no trânsito, será devidamente incinerada e seus autores execrados. Se não for incinerada será desmoralizada em praça pública e desobedecida à luz do dia sem que nada possa ser feito, pois os cristãos, que são maioria no Brasil, veem no faminto, o Cristo. – Me deste de comer…
É evidente que a esmola não é suficiente para resolver os graves e crônicos problemas sociais do Brasil.
Podemos e devemos hoje refletir sobre a necessidade imperiosa de políticas sociais que construam mais equidade, como também sobre a necessidade do combate à fome no Brasil de forma sistemática e universal, podemos e devemos criticar a portaria do MDS que limita o programa de segurança alimentar a cidades maiores do que 300.000 habitantes, podemos criticar a falta de apetite do governo Federal em enfrentar os problemas sociais com políticas universais. É nossa obrigação. As políticas públicas se tornaram, de fato, no mundo moderno, a expressão política do desejo de justiça social contido, por exemplo, mas não somente, nas bem-aventuranças.
Uma coisa de toda sorte é certa: a tradição da esmola no Brasil, sobretudo quando se trata de dar comida para quem tem fome, é fundamento franciscano que nasceu com o país desde aquela primeira missa na Bahia em 1500.
Esse projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo, do ponto de vista simbólico, tem o peso de uma afronta a tudo o que somos, é coisa do fim dos tempos, do apocalipse ou de anúncio do anticristo.
Arrisco um palpite, o projeto de lei será ou desobedecido categoricamente, produzindo até um aumento das doações de comida em São Paulo ou, como a PEC do estupro, incinerado e os nomes dos vereadores que a aprovaram gravados na mente dos paulistanos.
Porém, temos dois problemas para superar essa fase tenebrosa e dar ao Brasil a chance de surfar uma onda democratizante que nos leve não ao Afeganistão mas a uma sociedade de direitos e bem estar social para todos.
O primeiro é o que eu vou chamar de inércia parlamentar, ou seja o fato de que, apesar dessa agenda estar morta, ainda haver uma presença majoritária de vampiros e Frankensteins nos legislativos. Essa gente vive numa espécie de bolha afegã. Para onde vão só encontram monstros e monstrinhos o que os faz tomar essa realidade doentia por normal e majoritária, por isso têm coragem de nos levar à náusea e ao asco.
Esses legisladores ainda têm, lamentavelmente, maioria ou iniciativa institucional volumosa e podem certamente ainda produzir retrocessos institucionais e morais ao país.
O segundo problema é que o campo progressista, a quem a responsabilidade histórica pertence, ainda não percebeu a relevância estratégica dessa agenda solar e democratizante que é a que obviamente agrega as maiorias do Brasil hoje, muito para além das querelas que a dividem, do ponto de vista ideológico, ou religioso.
A esquerda em particular, vivendo também em bolhas, não consegue ter foco nessa agenda ampla e civilizatória o que a fragiliza como força forte capaz de nuclear essa nova unidade pela democracia, direitos e bem estar social que, no entanto, grita como necessidade histórica.
Ora, esses dois fatores associados operam no sentido de atrasar o enterro solene das propostas da extrema direita.
Precisamos mais do que nunca de um realinhamento dos discursos e práticas das forças políticas responsáveis por conduzir os destinos do país a um reencontro com ele próprio que seja capaz de atribuir a essa agenda da modernidade, do respeito aos direitos, da brasilidade democrática e do bem estar social a importância estratégica que ela tem.
Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia
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FONTE: JORNAL GGN