BdF conversou com presidenta da Abrasco sobre os caminhos para garantir um dos princípios da saúde pública brasileira
Há quase 60 anos o Brasil celebra, em 5 de agosto, o Dia Nacional da Saúde. A data foi instituída no aniversário do médico e sanitarista Oswaldo Cruz, personagem primordial na construção da saúde pública brasileira.
Desde que foi decretada a efeméride, o Brasil viveu realidades díspares na economia, na política e na sociedade. A desigualdade estrutural, no entanto, foi ponto comum da ditatura militar aos períodos de democracia.
A participação popular nos debates e decisões também passou por altos e baixos e, mesmo com a redemocratização, não é garantida na integralidade até hoje. Tanto da Constituição Federal quanto nas legislações específicas sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) ela é considera um instrumento primordial
Em entrevista ao Brasil de Fato, a presidenta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Rosana Onocko afirma que o SUS carrega essa premissa com “radicalidade”.
Onocko pontua, no entanto, que o fortalecimento dessa estrutura esbarra na falta de financiamento desde o início. Segundo a especialista, paradoxalmente ao apelo popular de sua criação, o SUS também enfrenta, historicamente, os ideais de austeridade econômica.
“O SUS começou a ser implementado logo quando as políticas fiscalistas ganharam maior peso. Quando se começa a priorizar que o mais importante para um país é gastar tanto quanto ganha, como se isso fosse a principal razão de ser do Estado. Sempre que houve políticas fiscalistas, o que se corta é a verba para políticas públicas e não a dos rentistas.”
Na conversa, Rosana Onocko ressaltou que as dificuldades estruturais somadas ao desmonte do período pós-golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff e ao Bolsonarismo aprofundaram a disparidade.
Entre 2016 e 2022, o Brasil perdeu espaços de participação social, financiamento de políticas públicas importantes e estrutura de setores essenciais. A partir de 2023, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), alguns desses processos passaram a ser retomados.
“Eles não conseguiram acabar com o Conselho Nacional de Saúde porque não puderam, mas fecharam muitos outros conselhos. Estamos vendo hoje algo bom e que é importante ressaltar desse governo é que houve a retomada dos conselhos, mas essa retomada não produz efeitos imediatos. E há problemas que têm relação com a estrutura da sociedade brasileira, que, de certa forma, trabalham contra a participação popular.”
Leia a entrevista na íntegra a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Brasil de Fato: Sabemos que o SUS enfrentou muitas dificuldades ao longo dos anos, desde a Constituição de 1988 até sua implementação nos anos 90, e durante o período democrático, especialmente a partir de 2016. Enfrentamos obstáculos, em parte devido ao contexto político do Brasil, mas também a questões estruturais que nem mesmo os governos progressistas conseguiram resolver. Quais são os caminhos para superar essas questões?
Rosana Onocko: Essa é uma questão ótima, mas difícil de responder. Primeiro, acho que é importante fazer uma certa contextualização para entender de que país estamos falando, quando aparece o Sistema Único de Saúde. No bojo das lutas pela redemocratização e da Constituinte foi muito importante – como disse Sérgio Arouca, um marco civilizatório para o Brasil – a criação de um sistema de saúde único, de cobertura universal, que subsidia a oferta como poucos países tão grandes quanto o Brasil têm. Conseguimos um golaço em um determinado momento, em uma conjuntura política de efervescência e de reivindicação de direitos muito alta.
Agora, veja o paradoxo: o SUS foi criado nessa conjuntura e começou a ser implementado logo quando as políticas fiscalistas ganharam maior peso. No momento em que se começa a priorizar que o mais importante para um país é gastar tanto quanto ganha, como se isso fosse a principal razão de ser do Estado. Não estou dizendo para ser irresponsável, mas quero dizer que sempre que essas políticas fiscalistas foram colocadas, e isso aconteceu no mundo todo com o neoliberalismo, quem paga a conta sempre são os mesmos. Sempre que houve políticas fiscalistas, o que se corta é a verba para políticas públicas e não, por exemplo, a dos rentistas. No Brasil, estamos discutindo isso agora muito recentemente, por causa dos juros, se caem ou não caem. Não cair os juros significa que o Brasil escolhe pagar mais dinheiro para quem tem dinheiro guardado e aplicado no banco do que cobrir direitos e acesso a direitos para as classes populares. É simplesmente isso.
Cada vez que falamos de implantação e implementação de política pública no Brasil, o tema é levado pela grande mídia, pelos formadores de opinião, pelos lobbies dos rentistas, que são os mais poderosos neste país, para essa discussão do gasto. É muito importante marcar o dia 5 de agosto, Dia Nacional da Saúde. Há dois anos fizemos a primeira conferência livre, democrática e popular do Brasil. Naquele momento, estávamos em plena campanha eleitoral. Neste dia, há dois anos, entregamos uma carta para o então candidato Lula da Frente pela Vida, com questões fundamentais para o nosso Sistema Único de Saúde.
Na ocasião, disse a ele que sabia que, se ele ganhasse, no dia 2 de janeiro haveria gente dizendo para ele que o SUS não cabia no orçamento. Temos visto isso acontecer. Algumas coisas que precisamos resolver dentro do Sistema Único de Saúde não foram resolvidas nem sequer pelos governos progressistas. E isso acontece por causa da estrutura social e econômica do Brasil. O SUS de fato cobre uma importantíssima necessidade da população brasileira, e acho que podemos dizer com orgulho que temos um dos maiores sistemas universais do planeta. O SUS que visa à integralidade com muita radicalidade. Hoje, praticamente todo o transplante e as grandes práticas de alta especialização e complexidade são desenvolvidas pelo SUS e, ao mesmo tempo, persistem problemas de fragilidade na cobertura mais básica da saúde.
Vivemos ao longo desses anos de obscurantismo recentes um retrocesso nas nossas taxas de vacinação, aumento da taxa de mortalidade materna, aumento dos índices de violência e lesões após a pandemia. Temos taxas assustadoras de mortes de jovens negros e periféricos, e o sistema de saúde deveria, ao menos, interferir em tudo isso. Não é que a saúde vá resolver sozinha, há uma série de questões que são mazelas sociais e históricas do Brasil. Mas teria que haver um compromisso muito claro de interromper, de incidir sobre esses assuntos.
Entre os pontos que apresentamos na carta que entregamos ao então candidato Lula estava a criação de uma carreira pública para o SUS. Estamos o tempo todo criando soluções provisórias para resolver o SUS, com o que chamamos de provimento. Nada mais é do que garantir profissionais bem formados e adequados no lugar onde o povo precisa deles. Temos carreira para os militares, para os juízes, temos salários altíssimos para a carreira dos assessores e de todo o corpo administrativo do Congresso, mas não temos carreira para o SUS.
Sempre se fala que não cabe no orçamento, mas é mentira. Quero chamar muita atenção para o fato de que, no orçamento, cabe o que a gente, pela política, for capaz de viabilizar. Nesse sentido, os últimos anos foram muito tristes para nós, que defendemos a vida e a saúde pública, porque vimos retrocessos, inclusive momentos de recuo dos próprios movimentos populares e políticos nas suas reivindicações. Então, acho que há uma necessidade de retomada do protagonismo popular na reivindicação desses direitos para que, de fato, as coisas mudem. As coisas não vão mudar sem luta.
Como você avalia o estado atual do SUS após o período de desmonte iniciado em 2016? Estamos no caminho para superar esses problemas? E a participação popular, já está se manifestando?
Tivemos o teto de gastos, que congelou e retirou recursos da saúde. No momento da posse de Lula tivemos fez uma retomada de recursos públicos, que foi importante para a saúde, porque, senão, o sistema seria inviável. Mas vivemos um apagão de todo tipo no SUS durante o governo passado. Desde o negacionismo com as vacinas, as mentiras com a cloroquina, até o fato de terem desativado inúmeros conselhos, que são órgãos que, de certa forma, regulam a participação popular.
Eles não conseguiram acabar com o Conselho Nacional de Saúde porque não puderam, mas fecharam muitos outros conselhos. Estamos vendo hoje algo bom e que é importante ressaltar desse governo é que houve a retomada dos conselhos, mas essa retomada não produz efeitos imediatos. E há problemas que têm relação com a sociabilidade brasileira ou da história e da estrutura da sociedade brasileira, que, de certa forma, trabalham contra a participação popular. Temos um compromisso e acho que os trabalhadores da saúde precisam ter esse engajamento, porque talvez estejamos numa posição de poder um pouco melhor que os usuários para capilarizar essa participação.
É importante também dizer que houve avanços. Acho que temos a sorte de ter um Conselho Nacional de Saúde que é muito ativo, que se manteve muito ativo e resistente durante o período do governo de extrema direita. Acho que isso é algo importante, que mostra uma certa maturidade da participação no Brasil. É algo que fortalece muito a participação popular. Mas, novamente, esse fortalecimento não ocorre da noite para o dia, porque também depende de uma certa organização da sociedade civil.
Quero lembrar que tivemos, nos últimos anos, a criação de algumas organizações da sociedade civil que foram muito importantes, como a Frente Pela Vida. Houve uma série de redes que se formaram, especialmente durante a pandemia, para lidar com a falta de políticas públicas de saúde no Brasil. E essas redes continuam existindo e pressionando. A própria Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Pensan) tem atuado nesse sentido.
Estamos vendo uma tentativa de retomada, mas ela é gradual e depende muito de um reengajamento da sociedade. Essa é uma tarefa urgente, porque os desafios são muitos. O desmonte foi grande e o apagão de dados e informações é uma realidade que ainda estamos tentando superar. Os movimentos sociais precisam recuperar sua força para garantir que essas questões de saúde pública voltem a ser priorizadas, e que haja uma pressão constante para que o governo continue avançando nas políticas públicas e na recuperação do SUS.
Os últimos anos foram muito difíceis para nós, defensores da vida e da saúde pública. Vimos retrocessos, inclusive no recuo de movimentos populares e políticos em suas reivindicações. Há uma necessidade urgente de retomada do protagonismo popular na luta por esses direitos. As coisas não vão mudar sozinhas.
No final do ano passado, o Conselho Nacional de Saúde anunciou a ampliação dos conselhos populares de saúde, com a meta de saltar de cerca de mil para 42 mil conselhos em todo o Brasil. Como esses conselhos podem atuar dentro de um hospital ou de uma unidade básica de saúde? Eles são um passo importante?
É importante entender que o SUS, quando foi planejado, trouxe uma radicalidade da participação ao ponto de que esses conselhos são tripartites, mas pressupõem 50% de participação do usuário, então são 50% dos usuários, um quarto da gestão e um quarto dos trabalhadores.
Há uma dificuldade da participação popular em alguns setores, mas também existe uma ambiguidade, porque ambas as coisas coexistem hoje na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo que temos grupos que são muito ativos e reivindicam muito, também há algumas localidades e alguns equipamentos de saúde que podem estar cooptados pela administração.
Claro que isso existe e claro que temos que combater isso. O que precisamos é que os usuários representem os usuários, que os trabalhadores representem os trabalhadores, e que a gestão, o governo de cada instância, também se manifeste explicando por que consegue ou não consegue algo. Mas acho que é muito importante, muito relevante, que a gente capilarize a participação.
O momento que vivemos que nos empurrou para o virtual, é um momento em que esses espaços de encontro, de compartilhamento da tomada de decisões, de impactar e de empurrar a política pública para o lado que achamos certo, são muito importantes e preciosos.
Como explicar para as pessoas a importância da participação popular nas políticas de saúde, para que esse debate avance sem ressalvas e com consenso dentro dessa temática?
Eu venho do um campo de trabalho da saúde mental, e os movimentos da saúde mental têm uma frase que eu gosto muito: “Nada sobre nós sem nós”. Eu acho que essa frase serve para qualquer usuário de qualquer área do SUS. Ninguém é melhor que a gente para saber o que precisa.
Estamos falando do SUS, mas poderia ser sobre educação, por exemplo. Precisaríamos ter muitos conselhos de pais com escolas para que nossas escolas de fato melhorassem.
É um campo da política pública que, inclusive, é estudado internacionalmente. A participação dos usuários melhora a qualidade dos serviços, melhora a atribuição de prioridades, por exemplo.
No Brasil, ainda temos o enfrentamento de usos do poder, cooptação e captura pela politicagem, que não é a grande política, de determinados espaços de decisão. Mas quanto mais a gente participa e quanto mais próximos estamos dos nossos serviços, maior a chance de controlarmos adequadamente o que os políticos estão fazendo com o nosso dinheiro.
Quais são os obstáculos mais imediatos que precisamos superar para reconstruir o SUS e implementar efetivamente a participação popular no sistema?
Temos falado muito sobre garantir o financiamento e a organização. Recentemente, pela Abrasco, junto com a Escola Nacional de Saúde Pública, realizamos um ciclo de seminários. Focamos em três grandes eixos estratégicos: o financiamento, a regionalização — ou seja, como organizar a rede por regiões, porque pequenas cidades não conseguem cobrir tudo se não se organizarem regionalmente — e também a questão das carreiras, que são três pilares fundamentais e estratégicos para o avanço do SUS.
Mas eu diria também que precisamos preparar o SUS para o enfrentamento das mazelas estruturais do Brasil. Por exemplo, paradoxalmente, às vezes vemos o racismo se repetir dentro dos próprios serviços de saúde, tanto na atenção primária quanto nos hospitais. Há estudos mostrando que as mulheres negras, por exemplo, são menos bem cuidadas na gravidez do que as mulheres brancas. Também vemos machismo e patriarcado dentro dos serviços.
Então, precisamos estar atentos e oferecer treinamentos e qualificações para os trabalhadores do SUS, porque eles, como a sociedade, às vezes reproduzem essas mazelas estruturais. Precisamos de estratégias ativas de combate a isso. Precisamos de estratégias antirracistas e antipatriarcais nos centros de saúde, ou não vamos contribuir para mudanças.
Como mencionei no começo, precisamos incidir sobre essas grandes mazelas estruturais do nosso país pela saúde. Claro que a saúde não vai resolver tudo sozinha, mas ela tem um papel importante a desempenhar nesse sentido.
Edição: Nicolau Soares
Fonte: Brasil de Fato