Alcançar o apoio dos membros do G20 em torno de propostas representou a reconstrução dos objetivos da política externa brasileira
Por Flávia Loss de Araujo
Em The Conversation
O resultado da cúpula de líderes do G20 realizada no Rio de Janeiro marca, sem dúvidas, uma série de vitórias para a política externa brasileira e também para a comunidade internacional se entendermos o que é considerado um sucesso em termos de governança global.
Primeiramente, a declaração da cúpula do G20 é uma grande conquista da diplomacia brasileira, pois congrega vinte países em torno de agendas das quais nem todos são partidários (como os direitos humanos). Conseguir esses consensos significou um ano de intensas negociações para o resultado final.
O Brasil conseguiu apoio nos principais temas que propôs: a fome e a pobreza, sempre fora do radar dos países ricos; a sustentabilidade; a bioeconomia, atingindo o primeiro tratado multilateral sobre o tema.
Mais um consenso foi a taxação dos super-ricos, pauta que toca nos temas da desigualdade entre os países e os paraísos fiscais. Alcançar o apoio dos membros do G20 em torno dessas propostas representou a reconstrução dos objetivos da política externa brasileira, achincalhada durante o governo Bolsonaro, e coroou a volta do Brasil como um país relevante na comunidade internacional depois de anos de isolamento autoinfligido.
Outros dois pontos que passaram despercebidos por algumas análises é que a cúpula do G20 fez com que o diálogo com a Venezuela retomasse a normalidade, evitando um desgaste enorme para o governo brasileiro e preservando as boas relações com o tumultuoso país vizinho.
E o que dizer da conturbada presença do mais novo representante da extrema direita latino-americana, o presidente argentino Javier Milei, que até o último instante tentou desfazer os consensos alcançados e foi habilmente contornado pela diplomacia brasileira?
Voltando às propostas feitas pela presidência e apoiadas pelos demais membros do grupo, seriam estas “mais do mesmo”, “indefinidas”, que não mudam no âmbito internacional como alguns analistas e parte da imprensa disseram ontem? Compreender a natureza de fóruns internacionais como o G20 talvez responda essa pergunta.
Esboçado desde 1999 e formalizado em 2008, o G20 nasceu para reunir os ministros de finanças e presidentes de bancos centrais das vinte maiores economias do planeta para discutir as crises financeiras desses períodos. As crises da década de 1990, em especial, trouxeram um novo fator: era a primeira vez que problemas econômicos de países em desenvolvimento afetaram as economias centrais. Era necessário, portanto, ampliar as discussões para além do restrito Grupo dos Setes (G7), grupo de países ricos criado em 1975 e colocar na mesa de negociações as economias ainda em ascensão. Com o decorrer dos anos, o G20 começou a discutir outros temas além de finanças e hoje a sustentabilidade está no centro dos trabalhos.
O G20 surgiu como um grupo informal e de estrutura flexível, dependente da presidência rotativa entre os seus membros para organizar as reuniões de cúpula e os grupos de trabalho. Além disso, não possui um tratado constitutivo e não tem capacidade de impor normas.
Ao ler essa breve descrição, a maioria das pessoas se pergunta por que um fórum desse tipo deve existir se “não serve para nada”. Mas a informalidade e flexibilidade é demanda dos países membros que voluntariamente optaram por participar. São essas características que permitem que ministros e outros representantes de países com interesses divergentes, como os Estados Unidos e a Rússia, estejam discutindo por quase um ano questões que afetam a humanidade, como a erradicação da fome ou as mudanças climáticas. As ações concretas que tanto precisamos dependerão dos esforços de cada país e da correspondente pressão de suas sociedades civis. Os compromissos existem e agora falta cobrar a sua execução.
Imaginar um mundo sem nenhum tipo de coordenação é difícil porque vivemos sob a débil governança da Organização das Nações Unidas (ONU) desde o final da Segunda Guerra Mundial que, aliás, completará 80 anos em 2025. As lembranças de um sistema internacional em constante ameaça de guerras de alcance mundial e em que os problemas comuns não eram sequer discutidos são uma memória pálida e, talvez por isso, tantas pessoas desdenhem dos avanços de fóruns internacionais como o G20.
Existem hoje forças políticas que se colocam contra essas alianças e o mínimo de governança global que conseguimos alcançar, como as críticas de Milei em seu discurso na reunião de líderes deixaram evidente. Em consonância com o pensamento de outros políticos de extrema direita, o presidente argentino chamou a governança global de um “corset” que asfixia países que pensam diferente. É contraditório que os regimes internacionais sejam criticados por restringirem a liberdade dos Estados ao mesmo tempo em que são acusados de serem fracos e pouco efetivos, o que demonstra censuras vazias de significado e que servem apenas para animar os seus apoiadores contra inimigos imaginários.
Líderes como Donald Trump e Milei defendem a regra do “cada um por si” nas relações internacionais. É uma ideia que ganha cada vez mais adeptos entre as pessoas, situação que torna declarações como a do G20, que defende princípios básicos de direitos humanos e sustentabilidade, um manifesto importante daqueles que ainda defendem uma ordem internacional baseada em regras e cooperação. A presidência brasileira obteve conquistas importantes para a nossa política externa e também para a ordem internacional que busca preservar.
Flavia Loss de Araujo é doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e coordenadora da Pós-Graduação em Política e Relações Internacionais, Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)
Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN.
FONTE: JORNAL GGN