Mesmo em meio à crise pandêmica, há instrumentos para garantir comida no prato do brasileiros, avalia José Graziano
Renda em queda, auxílio emergencial insuficiente, forte inflação de alimentos e a interrupção dos programas federais de combate à fome.
Esses são os ingredientes da tempestade perfeita que tem tirado a comida do prato dos brasileiros, na avaliação do criador do programa Fome Zero e ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), José Graziano.
“Eu me sinto indignado, essa é a palavra. Nós fizemos um programa e acabamos com a fome no Brasil. Introduzimos o direito à alimentação na Constituição para garantir que os problemas alimentares seriam problemas de estado e não de governo. E em três governos seguidos eles foram desmontados”, declarou em entrevista ao Brasil de Fato.
Na primeira avaliação global da fome após o início da pandemia, a FAO estimou que o número de pessoas em insegurança alimentar severa no país saltou de 3,9 milhões para 7,5 milhões em 2020.
“É preciso adotar algumas medidas paliativas. Por exemplo, mudanças na tributação para criar incentivo aos produtores de alimentos para o mercado interno”, sugere.
Ao se incluir também aqueles em insegurança alimentar moderada, os dados da FAO revelam que um quarto da população brasileira deixou de comer por falta de dinheiro.
“Além da fome, o Brasil também está comendo mal, cada vez pior. Não são só os pobres. Há uma mudança de hábitos alimentares importantes nas classes médias e até mesmo nas classes altas”, aponta.
Em 2020, o Brasil enfrentou aumento de 14,09% no preço dos alimentos, cerca de 10 pontos percentuais a mais do que a inflação oficial do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
“Eu diria que a principal causa da inflação de alimentos é a indexação da nossa economia ao dólar decorrente do nosso modelo agroexportador no mundo globalizado e financeiro, onde o sistema financeiro predomina e dita todas as regras”, avaliou Graziano.
Assim, os brasileiros têm deixado de comer salada, arroz e feijão para se alimentar de macarrão instantâneo, salsicha e presunto, produtos por vezes mais baratos e de forte apelo comercial.
“Eu acho isso gravíssimo, principalmente quando afeta a infância. O Brasil dá subsídios para uso de agrotóxicos. Por que não dar para comer frutas, verduras e legumes? Precisa ter vontade política, e é isso que não temos”, questiona o ex-diretor da FAO.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Na última entrevista ao Brasil de Fato, em maio de 2020, o senhor já indicava que a negligência com as políticas alimentares iria trazer consequências graves. Agora, pesquisas revelam que a velha chaga da fome foi definitivamente reaberta no Brasil. No cenário atual, quais são os principais obstáculos que impedem a chegada da comida no prato do brasileiro?
José Graziano: A negligência do governo federal com as políticas alimentares tem consequências muito graves. A situação atual dos mais pobres e desempregados é um dilema: “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Se ficar em casa, passa fome; se sair de casa para procurar trabalho, pega covid. A incapacidade do governo federal de ter um programa de auxílio emergencial à altura das necessidades do segmento mais pobre da população, que ficou literalmente sem renda com a pandemia, é o principal obstáculo. Sem auxílio emergencial e sem vacina, estamos vivendo a tempestade perfeita. Não basta também só acelerar a vacinação, porque as pessoas precisam sobreviver até ganharem a imunidade. Então tem que combinar essa aceleração da vacinação com a reconstituição de um auxílio emergencial à altura das necessidades.
Nós estamos hoje dependendo das campanhas da sociedade civil organizada. A desarticulação do governo se mede por esse número de campanhas de solidariedade, que, aliás, estão fazendo coisas incríveis, como a Ação da Cidadania e a Cufa [Central Única das Favelas]. Eu poderia citar inúmeras campanhas que estão entregando alimentos a quem precisa. Mas nós não podemos viver eternamente de campanha. Afinal de contas, a alimentação saudável é um direito dos brasileiros. Está no artigo 6º da Constituição. Alguém em algum momento precisa acionar o Supremo Tribunal Federal para que o governo garanta esse direito. Não é só ficar discutindo aquilo que interessa à classe alta, como a liberdade de imprensa, a urna, se imprime ou se não imprime [o voto]. Claro que essas coisas são fundamentais para a democracia brasileira. Mas fundamental para a sobrevivência da população mais pobre do Brasil é garantir o direito humano à alimentação adequada.
Enquanto cai a renda dos brasileiros, sobem os preços dos alimentos. Especialistas apontam que o fenômeno está relacionado ao aumento dos combustíveis, à desvalorização do real, ao predomínio do agronegócio sobre a agricultura familiar e ao abandono da regulação de preços por meio de estoques públicos. O que deveria ter sido feito – e quais medidas ainda podem ser tomadas – para conter a alta no preço da cesta básica?
A inflação de alimentos hoje tem várias causas. Mas eu diria que a principal é a indexação da nossa economia ao dólar decorrente do nosso modelo agroexportador no mundo globalizado e financeiro, onde o sistema financeiro predomina e dita todas as regras. Nas circunstâncias atuais, é impossível mudar o modelo agroexportador. Não porque ele seja eterno, mas em função da hegemonia política do agronegócio no Congresso Nacional. O agronegócio tem, junto com a bancada da bala e dos evangélicos, uma ampla maioria e está exercendo essa hegemonia, inclusive mudando os artigos constitucionais.
É preciso adotar algumas medidas paliativas. Não precisa ficar de mãos abanando, como está atualmente. Por exemplo, mudanças na tributação para criar incentivo aos produtores de alimentos para o mercado interno, taxar exportação de produtos básicos em caráter emergencial até a entrada das importações ou da próxima safra, dependendo do produto. O feijão, por exemplo, tem safra curta, de 90 dias, então isso pode ajudar. Não se pode usar essas medidas de caráter emergencial de forma permanente. Porque aí vai afetar a produção da próxima safra, desincentivando os produtores de alimentos básicos. Mas pode-se até mesmo contingenciar as exportações, frear as exportações de regulagem, como fizeram muitos países. Isso não é novidade. Não ajuda o comércio mundial, mas ajuda os pobres do país.
Esses são todos mecanismos de intervenção muito fortes e que só podem ser exercidos como medidas curativas de curto prazo. E que precisam de medidas compensatórias para não criar mercados negros e redução da produção na próxima safra. Porque os capitalistas migram para os produtos não contingenciados, por exemplo, como ocorreu na Argentina, nosso vizinho que tentou várias dessas medidas e nem todas deram resultado. Enfim, dá para colocar algumas medidas em prática. Mas é preciso ter vontade política.
Na pandemia, estudos indicam que o brasileiro tem deixado de comer salada, arroz e feijão para comer macarrão instantâneo, salsicha e presunto. São produtos baratos e, muitas vezes, de forte apelo comercial. Isso dá lugar a uma perversa ironia: a convivência entre o sobrepeso adulto e a subalimentação em crianças. Como o senhor enxerga esse panorama?
Eu acho isso gravíssimo, principalmente quando afeta a infância. Nós estamos comprometendo gerações futuras de brasileiros. É um problema de saúde pública que não se discute. Não vejo isso sendo discutido, exceto nas rodas de especialistas. Quero parabenizá-lo por ter levantado essa questão. E tem muito que se pode fazer, a começar por campanhas de esclarecimento. Pode-se também alterar alíquotas tributárias para favorecer produtos mais saudáveis, dar subsídios. O Brasil dá subsídios para uso de agrotóxicos. Por que não dar para comer frutas, verduras e legumes? Enfim, precisa de novo ter vontade política, e é isso que não temos.
A pandemia desnudou o que nós já vínhamos prevendo. O aumento da fome e da insegurança alimentar em geral. Além da fome, o Brasil também está comendo mal, cada vez pior. Não são só os pobres. Há uma mudança de hábitos alimentares importantes nas classes médias e até mesmo nas classes altas. É mais fácil comprar produtos ultraprocessados. E eles são, digamos, mais saborosos, do ponto de vista de alguns, porque possuem uma grande quantidade de açúcar, ou uma grande quantidade de sal, ou uma grande quantidade de ácidos graxos não saturados.
Ao deixar isso continuar, nós estaremos comprometendo nossos hábitos alimentares. E isso custa tempo para reverter. É preciso uma campanha de alimentação saudável, é preciso uma educação alimentar que seja capaz de reverter esse processo. E o prejuízo imediato nós estamos vendo. Outro dia, fui pegar um ônibus perto da minha casa e o ponto de ônibus estava em reforma para aumentar o tamanho dos bancos. As pessoas já não conseguem sentar naqueles espaços reservados. Imagina isso para a saúde. Nós tivemos o aumento da obesidade como causa mortis [causa da morte] na pandemia, em função de comorbidades existentes entre os pacientes.
Com o cancelamento do Censo 2021, existe a possibilidade de um apagão de dados prejudicar a elaboração de políticas públicas para garantir a alimentação da população?
A não realização do Censo prejudica o país em todos os seus aspectos. Veja bem, estamos falando de censos que são feitos de 10 em 10 anos. Um a cada década. Se não tivermos esses dados atualizados, fica muito difícil qualquer planejamento, qualquer alocação eficiente de recursos. E o país fica ao sabor dos especuladores, dos livres mercados. Porque ninguém sabe o que se produz, o quanto se produz, onde se produz e quem consome. Isso não interessa nem mesmo aos capitalistas.
Enquanto diretor-geral da Organização da ONU para Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês), o senhor anunciou a saída do Brasil do Mapa da Fome em 2014. Como se sente ao observar os retrocessos na política alimentar desde então?
Eu me sinto indignado, essa é a palavra. Nós fizemos um programa e acabamos com a fome no Brasil. Introduzimos o direito à alimentação na Constituição para garantir que os problemas alimentares seriam problemas de estado e não de governo. E em três governos seguidos eles foram desmontados. Primeiro, começou com a redução dos valores orçamentários para os programas da política alimentar. Segundo, passou-se ao desmonte puro e simples de extinguir órgãos ou privatizar pedaços fundamentais do sistema. Então esse abandono me deixa indignado.
E mais ainda porque nós mostramos que acabar com fome não só é possível, como não é tão complicado, como mandar uma nave para Marte. Nós não estamos falando de novas tecnologias, de informática, de questões mirabolantes. Nós sabemos o que é preciso para acabar com a fome: comida. Nós já fizemos isso uma vez, e esse país não tem problema de produzir comida. Aqui não falta comida, não falta alimento. Falta dinheiro para comprar os alimentos. É uma questão fundamentalmente econômica. E, para resolver isso, é uma questão de vontade política, de o governo botar a fome e a má alimentação como prioridade no topo da agenda política. E não ficar aí cuidando da reeleição, enquanto a população morre ou de fome, ou de covid ou tem comprometido o desenvolvimento futuro das crianças e dos filhos.
Fonte: Brasil de Fato