Várias vezes o ex-presidente apontou a gestão do atual como um governo de “continuidade” em relação ao seu. Em comum, os mesmos interesses econômico-financeiros que pretendem manter o jogo como está
A crise institucional provocada pelos recorrentes ataques de Jair Bolsonaro às instituições, que encontrou seu auge nas ameaças feitas ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao ministro Alexandre de Moraes, ganhou um novo personagem. O ex-presidente Michel Temer entrou no cenário como autor de mais uma missiva que busca interferir na história política brasileira, desta vez para tentar apaziguar os ânimos em Brasília.
Temer foi procurado por Bolsonaro, viajou à Brasília em um avião da FAB e redigiu a chamada Declaração à Nação, carta na qual o presidente expressa que nunca teve “intenção de agredir quaisquer dos poderes”. Sem mesóclise, o ghost writer escolheu termos como “esticar a corda”, mais ao feitio do hoje ocupante do Planalto, e também intermediou uma ligação telefônica do presidente com o magistrado indicado ao Supremo pelo emedebista.
“Temer indicou Alexandre de Moraes, com que tem uma relação mais próxima. Tem também uma conexão com um setor influente dos militares, já que tinha Sérgio Etchegoyen como homem forte no Palácio do Planalto e possui habilidade política e influência junto a muita gente na Câmara”, destaca o cientista político e professor da Unicamp Wagner Romão à RBA. Ele não deixa de demonstrar espanto diante do retorno do ex-presidente ao centro do palco político. “A participação do Michel Temer é surreal, para falar a verdade.”
É de fato espantoso que um político que agiu na sombras para assegurar o impeachment, sem crime de responsabilidade, de uma presidenta da República, agora atue para evitar o impedimento de um mandatário que traz consigo evidências de cometimento não só de crimes de responsabilidade como também de possíveis crimes comuns como o de desobediência, ao dizer que não cumpriria determinações judiciais nos atos de 7 de Setembro. Contudo, há mais em comum entre Temer e Bolsonaro do que sugerem as diferenças de uso da linguagem dos dois.
Etchegoyen, lembrado por Wagner Romão, é um elemento-chave para entender a proximidade entre os dois presidentes que sucederam Dilma Rousseff. Leo e Cyro Guedes Etchegoyen, pai e tio do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Temer, ocuparam cargos relevantes na ditadura civil-militar, e foram citados no relatório final da Comissão Nacional da Verdade de 2014 no grupo dos 300 militares acusados de terem atuado na prática de “graves violações de direitos humanos”. O fato revoltou o único general da ativa que se manifestou publicamente contra o relatório.
Já no governo interino de Temer, cuja ação em prol do golpe contra Dilma foi avalizada pela cúpula militar, Sérgio Etchegoyen ganhou lugar no ministério muito em função de sua proximidade com o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, aquele que mais tarde ameaçaria publicamente o STF no julgamento da prisão após condenação em segunda instância. No livro Dano Colateral: a intervenção dos militares na segurança pública, a jornalista Natalia Viana conta que um dos objetivos de Etchegoyen ao assumir o GSI, dito por ele mesmo, era “trazer de volta os militares a fóruns de onde eles tinham saído”, citando a inclusão de integrantes das Forças Armadas em discussões sobre tratados internacionais envolvendo o Brasil, por exemplo.
No governo Temer, um outro fato histórico chama a atenção para o objetivo de Etchegoyen concretizado. Pela primeira vez desde sua criação, o Ministério da Defesa passou a ter como titular um militar. A criação da pasta, prevista na Constituição de 1988, só chegou a ser efetivada em 1999, no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. Tratava-se de mais uma etapa no processo de redemocratização, simbolizando justamente a supremacia do poder civil sobre o militar, o que ganhou outra conotação quando Temer nomeou para a pasta o general da reserva do Exército Joaquim Silva e Luna.
Naquela ocasião, a doutoranda em Sociologia Política Anaís Medeiros Passos disse à RBA: “A nomeação de um militar para essa pasta torna precária essa divisão. Dependendo da duração de tal gestão, pode significar uma politização das Forças Armadas, que gera riscos para a sua organização – como a história mostra.” A história mostra o que aconteceu em seguida.
“Eu tenho orgulho de dizer que o que eu plantei, como a reforma da Previdência e a simplificação tributária, elas virão à luz pelo novo governo. Eu confio muito no governo que vem aí, alicerçado, ancorado, amparado pela vontade popular. Tenho absoluta convicção de que o presidente eleito Bolsonaro seguirá na mesma trilha.”
A declaração acima é de Michel Temer, dada em uma cerimônia realizada na capital paulista em dezembro de 2018. Em mais de uma ocasião depois, disse que seu sucessor fazia um governo que seguia a mesma trilha que o dele. Em julho de 2019, falou, em entrevista à BBC: “Eu me recordo, quando presidente da República, eu dizia: ‘olha, será bem sucedido o presidente que der sequência àquilo que estou fazendo’. Do jeito que as coisas vão indo, o governo vai bem, porque está dando sequência ao nosso governo”.
Em janeiro do ano passado, o ex-presidente confirmou o voto dado ao ex-capitão. “Eu recebia muitas críticas indevidas da outra candidatura (Fernando Haddad). Votei em quem não falou mal do meu governo”, em uma justificativa cujo grau de maturidade lembra o do atual ocupante do Planalto. Salta aos olhos nas falas usuais desde a eleição de Bolsonaro não só a incrível autoestima de Temer mas a afinidade real com as pautas da equipe econômica de Paulo Guedes.
E, junto com ele está a maior parte da dita mídia hegemônica que, em uma postura negacionista diante de qualquer resultado efetivo que justifique a atual condução da economia no Brasil, insiste em aumentar a dose do remédio que a esta altura quase mata o paciente. Nas últimas semanas, clama-se por “pacificação” para que as “reformas” sejam tocadas, o que seria impossível em um processo de impeachment que poderia adentrar o ano eleitoral, tornando inviáveis as mudanças desejadas por parte da elite econômico-financeira e da classe política.
Assim, a mediação (?) de Temer chega em boa hora para esse grupo. E nada mais simbólico (e prático) que venha por meio deste personagem, que já serviu aos mesmos propósitos recentemente. Assim como em 2016, qualquer respeito às instituições ou ao rascunho da democracia formal que insiste em existir fica em segundo plano diante de um bem maior ou de “bens maiores” dos poucos de sempre.
A senha já havia sido dada antes pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), quando propôs ser uma ponte para restabelecer a “harmonia” entre os poderes. Inaugurou ali algo que viria a ser repetido em outros âmbitos após a carta do ex-atual: a falsa simetria entre os responsáveis pela crise.
Em sua declaração em 8 de setembro, Lira não citou os ataques de Bolsonaro ao Supremo, apenas sua cantilena a respeito do voto impresso, pedindo respeito a uma “decisão tomada”. Ao mesmo tempo fez crítica (pouco) velada ao STF citando, sem nominar, o caso do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), preso no âmbito do inquérito das fake news, reivindicando que seria um caso a ser apurado pela própria Casa.
Lira, com tal falsa equivalência, simbolicamente igualou crime e legítima defesa, o que é um perigo se tratando de um legislador. Nesta sexta-feira (9), uma nota da Fiesp também buscou igualar os desiguais, indo no mesmo sentido, como se a desarmonia entre os poderes não tivesse um protagonista. A maior parte da mídia tradicional tratou de colocar panos quentes e suspirar aliviada com a falsa moderação (algo que já fez antes, aliás) e uma jornalista chegou a dizer que uma suposta recusa de Alexandre de Moraes de se encontrar com Bolsonaro seria uma atitude “radical”.
Em vista da participação de Temer, fica a pergunta se estamos, mais uma vez por conta de grandes interesses econômico-financeiros e outros inconfessáveis, diante de um “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”, como diria o ex-senador Romero Jucá na célebre conversa gravada com o ex-diretor da Transpetro Sérgio Machado.
“A crise foi agudizando, esse processo de morde-assopra do Bolsonaro a gente já conhece, mas este é um momento em que as ações do STF, especialmente as do ministro Alexandre de Moraes, foram colocando Bolsonaro contra a parede”, aponta o cientista político e professor da Unicamp Wagner Romão. Isso porque boa parte dos riscos ao governo, a Bolsonaro e mesmo à sua família estão em processos e mesmo em futuras decisões a respeito do que ainda pode surgir em relação ao presidente na Corte.
Desde a prisão do ex-deputado e presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson, Bolsonaro tem levantado ainda mais o tom contra o Supremo, tendo como alvo principal Moraes. Poucos dias antes, o mesmo magistrado havia incluído o nome do presidente no rol de investigados do inquérito das fake news, aberto em agosto de 2019 pelo ministro Dias Toffoli para investigar ameaças a ministros da Corte. Em julho, Moraes também ordenou que a Polícia Federal investigasse os filhos do presidente, o senador Flávio, o deputado federal Eduardo e o vereador carioca Carlos como possíveis participantes de uma estrutura organizada para atentar “contra a estrutura democrática”.
Bolsonaro ainda é alvo de outros dois inquéritos no STF por conta de suposta interferência na Polícia Federal e da possível prevaricação no caso das negociações da compra da vacina Covaxin. E as fake news são o calcanhar de Aquiles de Bolsonaro. No Tribunal Superior Eleitoral há quatro ações relativas à chapa Bolsonaro-Mourão, tendo como objetivo a apuração de denúncias em torno do financiamento ilegal de disseminação de notícias falsas, além de delitos como o suposto uso fraudulento de nomes e CPFs de terceiros e sem autorização para registrar chips de celular e garantir disparos em massa no processo eleitoral de 2018.
A suspensão de repasses de dinheiro a perfis nas redes sociais, determinada pelo TSE, também atingiram em cheio o coração do bolsonarismo, levando o presidente a editar a esdrúxula Medida Provisória que altera a Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) para salvaguardar um de seus principais meios de mobilização.
Todas as últimas reações do Planalto mostram que o grau de preocupação com o que pode vir do STF é grande e, por isso, a responsabilidade da Corte aumenta. Em outras ocasiões, acabou sendo cooptada por interesses políticos e interpretações, no mínimo, bastante elásticas da Constituição, entre outras omissões, que ajudaram a colaborar com a tragédia nacional vivida hoje.
Agora, o Supremo tem a oportunidade de atuar como guardião da Constituição e zelar pelas instituições que têm sido rotineiramente atacadas. Não é preciso atuar politicamente, mas simplesmente cumprir a lei naquilo que lhe cabe. Como lembrou o advogado Mauro Menezes, ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República e integrante do grupo Prerrogativas , em entrevista ao Jornal Brasil Atual, “não há meio caminho, ou mediação possível com aquele que descumpre a Constituição, com aquele que é inimigo da democracia, e quer destruir o sistema legal”. Que o STF e as instituições não se apequenem.
Fonte: Rede Brasil Atual