Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida identificou principais mudanças, retrocessos e até possíveis ilegalidades
No último dia 8 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) publicou o decreto 10.833/2021, alterando uma série de regulações sobre a compra, uso, venda, armazenamento e controle de agrotóxicos no país. Após isso, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida realizou uma análise técnica sobre o decreto. Foram identificados 17 pontos que apresentam graves perigos à saúde e o bem-estar da população em geral e ao meio ambiente.
Na prática, a publicação do decreto 10.833/2021 impõe parte do chamado “Pacote do Veneno”, que é um Projeto de Lei (PL 6.299/2002) que ainda tramita no Legislativo. Anunciado pelo governo federal como uma medida que “traz mais segurança para aplicadores e incentivos à pesquisa científica”, o decreto 10.833 facilita a aprovação de agrotóxicos no Brasil. Segundo a Campanha Permanente, o decreto flexibiliza, inclusive, venenos que são causadores de câncer e mutação genética.
O decreto 10.833/2021 altera o decreto de número 4.074/2002, que regulamenta a lei brasileira de agrotóxico (Lei 7.802/1989). Segundo Naiara Bittencourt, advogada popular integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a publicação do decreto é um ato do presidente que passa por cima da participação do Congresso Nacional ou da sociedade civil.
“O ato usurpa as competências do Poder Executivo porque inova e afronta vários dispositivos da atual Lei de Agrotóxicos, a Lei 7.802/1989, além de violar direitos fundamentais e sociais da Constituição Federal, como o direito à vida, à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à alimentação adequada”, enfatiza.
Na última quarta-feira (13), um grupo de 35 deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) apresentou um projeto de decreto legislativo com o objetivo de derrubar o decreto assinado por Jair Bolsonaro. Entidades também estudam a proposição de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
Confira, a seguir, os 17 pontos levantados pela análise técnica da Campanha:
1. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) não é mais obrigado a publicar registros de agrotóxicos no Diário Oficial da União
Desde o golpe de 2016, o número de registro de agrotóxicos vem aumentando exponencialmente. Este controle por parte da sociedade só pode ser feito, pois atualmente os novos registros são publicados no Diário Oficial da União (DOU). A nova redação deixa aberta a possibilidade de publicação no Sistema de Informações de Agrotóxicos (SIA), que não sabemos nem se realmente existe e nem se será público quando estiver em operação. Fonte: Art. 2o – XV e Art. 14o
2. Implementa a “avaliação de risco”, que é mais permissiva do que a avaliação de perigo em vigor atualmente
O Ministério da Saúde agora passa a adotar oficialmente a avaliação de risco. Isso significa dizer que, mesmo que um agrotóxico apresente uma característica muito grave (por exemplo, ser cancerígeno), ele ainda pode ser aprovado caso se avalie que “nas condições de uso ideais” o risco de que ele cause câncer é “aceitável”. Na prática, esse ponto pode acabar com os atuais critérios proibitivos de registro previstos na Lei 7802. Não há risco aceitável para doenças graves e irreversíveis! (Previsto no Pacote do Veneno). Fonte: Art. 6o – I e III (Possivelmente ilegal pois confronta a Lei 7802).
3. Retira obrigação do Ministério da Saúde de avaliar a eficácia de agrotóxicos utilizados em campanhas de saúde pública e em domicílio
Agrotóxicos não são usados apenas na agricultura. Também são usados em campanhas de saúde pública (mata-mosquito, por exemplo) e em produtos utilizados em casa (sprays para matar insetos). Estes produtos não necessitarão mais de avaliação de eficácia pelo Ministério da Saúde, ou seja, quem diz se ele funciona ou não é apenas o Ministério da Agricultura. Fonte: Art 6o – II e IV.
4. Agrotóxico registrado para agricultura pode facilmente ser usado para ambientes hídricos e até capina química
O novo decreto simplifica a autorização de um agrotóxico agrícola para usos diferentes daquele registrado inicialmente. O uso de agrotóxico em ambientes hídricos, florestas nativas e ambientes urbanos e industriais pode representar até maior exposição da população. Por isso, todos os estudos necessários devem ser feitos antes de autorizar este tipo de uso. Este trecho inclusive pode legalizar a capina química urbana. Fonte: Art. 8o.
5. Após o registro de um agrotóxico, outros produtos contendo o mesmo ingrediente ativo terão menos estudos exigidos
Os estudos de eficiência e praticabilidade não serão mais necessários caso se registre um produto formulado com ingrediente ativo já registrado. Um produto formulado de agrotóxico possui outros ingredientes além do ingrediente ativo, que inclusive podem ser até mais tóxicos. Por isso, dois produtos formulados com o mesmo princípio ativo precisam passar por todos os estudos, pois podem ter diferenças bastante significativas. Fonte: Art. 10o – § 14.
6. Mais agrotóxicos poderão furar a fila e ter prazo de registro reduzido, gerando pressão sobre órgãos de saúde e ambiente, sem aumento de capacidade técnica de análise
O novo decreto define que o MAPA pode determinar, por diversos motivos, que agrotóxicos possam furar a fila de registro. O decreto original já previa priorização dos agrotóxicos de baixa toxicidade, porém, após a resolução da Anvisa, uma grande parte das substâncias agora é considerada de baixa toxicidade. Com isso, corremos o risco de uma enxurrada de priorizações, que colocará ainda mais pressão sobre os órgãos de saúde e meio ambiente, que precisarão analisar mais pedidos em menos tempo (o poder de definir quem é prioritário fica nas mãos do MAPA). Fonte: Art. 12o C e 14o § 3º.
7. Apesar de estabelecer prazos rígidos para o registro de um agrotóxico, o decreto não estabelece prazo para reavaliação
O decreto estabelece prazos que vão de 6 meses a 3 anos para conclusão da avaliação dos processos de registro de agrotóxicos. Estes processos muitas vezes envolvem análises complexas de estudos científicos, e são realizados por órgãos que não possuem a quantidade necessária de pessoal capacitado tecnicamente.
Porém, para a reavaliação de um agrotóxico, ou seja, quando surgem novos estudos que podem banir uma substância atualmente registrada, o decreto não estabelece prazo. O Paraquate, por exemplo, teve sua reavaliação iniciada em 2008, e apenas em 2021 aconteceu seu banimento completo. Foram 14 anos de uso de uma substância que já se sabia que deveria ser banida. Mais uma vez, o interesse das empresas de agrotóxicos se sobrepõe à proteção da saúde da população. Fonte: Art. 15o
8. Fica revogada a possibilidade de cancelar um registro de agrotóxico caso haja mudanças não autorizadas pelos órgãos de avaliação e registro
Além disso, o MAPA concentra mais poderes do que os órgãos de saúde e meio ambiente na aprovação de autorizações. Fonte: Art. 22o
9. Agrotóxicos que causam câncer, mutação genética, desregulação hormonal, danos ao embrião ou ao feto, ou danos ao aparelho reprodutivo agora podem ser registrados
Os critérios proibitivos previstos na Lei 7802 serviram até hoje para impedir o registro de agrotóxicos muito perigosos, ou para disparar o processo de reavaliação, caso estes efeitos não fossem conhecidos no momento do registro. O novo decreto permite estabelecer uma “dose segura” para agrotóxicos que causem este efeito. Porém, para agrotóxicos com efeitos graves como câncer ou que causem desregulação hormonal, qualquer dose acima de zero é suficiente para causar dano.
O novo decreto pode inclusive permitir que agrotóxicos já banidos voltem ao mercado. É um retrocesso legal, possivelmente conflitante com Lei 7802. Fonte: Art. 31o § 3o
10. Empresas só precisarão fornecer dados sobre vendas uma vez por ano, e apenas ao Executivo Federal
Atualmente, a informação deve ser entregue a cada 6 meses, e também aos estados. Esta prática permite que sejam tomadas providências em tempo razoável em caso de alteração do padrão de uso (por exemplo, efetuar análises de água em agrotóxico que teve aumento do uso). Fonte: Art. 41o.
11. Laudos de impurezas não devem mais ser enviados pelas empresas
Pelo novo decreto, tais laudos devem ser apenas guardados pelas empresas. Impurezas muitas vezes podem ser mais tóxicas do que o próprio princípio ativo. Fonte: Art. 66o § 2o.
12. Abre a possibilidade de uso de agrotóxico vencido
O novo decreto estabelece ser possível a revalidação, retrabalho ou reprocessamento de produtos agrotóxicos. Na prática, isso legaliza a venda de agrotóxicos vencidos. O decreto exige que devem ser mantidas as especificações de registro, porém a comprovação é inviável, na prática, pois todos os testes teriam que ser refeitos. Além disso, é impossível garantir a estabilidade da substância vencida, bem como o tempo pelo qual as condições serão mantidas. Fonte: Art. 69-A.
13. Produtos com mais agrotóxicos do que o permitido, ou contendo agrotóxicos não permitidos, podem ser considerados “aceitáveis”
O critério de “risco dietético aceitável” é altamente questionável, pois não considera interações com outros alimentos contaminados e as especificidades de cada pessoa. Fonte: Art. 86o § 8o.
14. Decreto prevê sistema de informação, mas não assegura transparência
Apesar de prever o desenvolvimento de um Sistema de Informações de Agrotóxicos (SIA), e de prever que muitas informações saem do DOU e ficam publicadas no SIA, o decreto não garante o acesso da população a informações deste sistema. Fonte: Art. 94.
15. Registro de aplicador de agrotóxicos pode ser dispensado para agrotóxicos de “baixo risco”
O decreto prevê a figura do aplicador de agrotóxicos, o que é positivo, no entanto, dispensa sua obrigatoriedade para agrotóxicos considerados de baixo risco. Porém, a classificação toxicológica que determina agrotóxicos mais ou menos perigosos refere-se somente aos efeitos agudos. Nesse sentido, a dispensa não se aplica, porque agentes pouco tóxicos do ponto de vista agudo podem estar associados a efeitos crônicos graves e potencialmente irreversíveis, como câncer, mutações, desregulação endócrina e outros. Fonte: 96-A Parágrafo único.
16. Agrotóxicos não registrados no Brasil poderão ser fabricados aqui para exportação
Vários agrotóxicos já foram proibidos no Brasil por representarem enorme risco à saúde ou ao meio ambiente. Como exemplo, podemos citar os organoclorados, como DDT (diclorodifeniltricloroetano), que provocam danos no sistema nervoso central, e são persistentes no ambiente. Apesar de não estar previsto explicitamente no novo decreto, o próprio Ministério da Agricultura afirmou em nota a previsão de produção de agrotóxicos não registrados para exportação. Isso significa riscos em toda a cadeia industrial de produção e transporte, além de empurrar para outros países com regulações mais frágeis produtos muito perigosos. Fonte: “Decreto estabelece novas regras para o registro e pesquisa de agrotóxicos“.
17. Agrotóxicos fabricados para exportação podem ter uso diferente daquele registrado no Brasil
Ainda que o agrotóxico seja exportado, ele será fabricado e transportado no Brasil. Assim, suas indicações devem ser as mesmas que foram concedidas a partir dos estudos que concederam o registro no Brasil. Fonte: Art. 95-A).
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira
Fonte: Brasil de Fato