Área foi cedida pelo Governo do Ceará ignorando estudos do Grupo de Identificação e Delimitação da Terra Indígena
Situada no município de Caucaia, entre a Serra da Japuara e a Praia do Cumbuco, a área do Povo Anacé é banhada pelo Rio Cauípe e emoldurada por altíssimas carnaúbas que tingem de verde a paisagem. Porém, sem demarcação do território indígena, a terra atrai olhares de diversos setores, o que tira o sono e a paz do povo que ocupa a região desde os tempos coloniais. “Os Anacés vem de lá, desde São Gonçalo, e desce pra cá pra Caucaia. Então todo esse terreno aqui, inclusive do Pólo (do complexo Industrial e Portuário do Pecém), é Anacé. Não tem como discutir que não seja do Povo Anacé. A existência aqui é desde o século XVI. Nosso cemitério data de 1630 e os nossos troncos velhos sempre nos contaram da existência desse cemitério e de outras lutas que sempre travaram aqui no Rio Cauípe”, afirma Paulo França, liderança Anacé, enquanto caminha sobre a ponte do Rio que dá nome a região.
No início de novembro, uma parte dessa área, algo equivalente a 120 hectares, foi doada pelo Governo do Estado do Ceará para a Prefeitura do Município de Caucaia, com o objetivo de ampliar o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. O problema é que a terra concedida pelo Governo está sobreposta ao território tradicionalmente ocupado por comunidades indígenas do povo Anacé, como aponta um parecer técnico do antropólogo Ronaldo de Queiroz Lima, apresentado à Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará.
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Queiroz explica que “terra indígena está caracterizada na Constituição Federal de 88, no artigo 231, como sendo a terra necessária para a vida do grupo indígena segundo seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições. Nesse mesmo artigo, o caput vai falar que esse direito sobre a terra indígena é um direito originário, anterior as constituições no Brasil. Nesse sentido, a cessão de terra do Governo do Estado para a Prefeitura sem antes esperar o Grupo Técnico definir a terra indígena, juntamente com os indígenas e com os demais entes interessados, é que se torna uma violação desses direitos originários”.
A lei estadual nº 17.755/21 aprovada pela Assembleia no início de novembro vai provocar importantes impactos na região. Pois, além de afetar diretamente os indígenas, a área doada pelo Governador do Estado está próxima ao leito do Rio Cauípe e da área de Proteção Ambiental do Lagamar do Cauípe. Segundo dados do cadastro da Funai, atualmente estão identificadas 25 aldeias, com cerca de 3 mil pessoas ou algo em torno de 1000 famílias da etnia, mas é possível que esse número seja ainda maior.
Segundo o Cacique Roberto Anacé, nenhuma de suas lideranças foram consultadas sobre a cessão dessa terra e que ficaram sabendo sobre a doação através da internet: “O Governo do Estado não nos consultou nessa questão da doação. Como é que eles vão doar uma terra que não é deles? Essa terra não é do Estado. Antes do Estado chegar aqui nesse Brasil, antes desses governos, antes desses colonialistas chegar no Brasil, a terra já era nossa. A terra era Tapuia que significa o sangue da terra, nós somos o sangue dessa terra”, protesta.
Uma parte do território ocupado pelos Anacés já foi desapropriado pelo Governo do Ceará em 2012 e 2013, por conta da implantação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Em nota, a Procuradoria Geral do Estado informou que 163 famílias foram indenizadas e reassentadas, o que deu origem a Reserva Taba dos Anacés. Na nota, a PGE afirma ainda que a área cedida em novembro de 2021 não tinha identificação de cadastramento de ocupação indígena.
Paulo Cesário Anacé, na Retomada de São Sebastião / Iago Barreto
Entretanto, os Anacés asseguram que a área cedida para o Pólo Industrial de Caucaia é sim ocupada tradicionalmente pelos indígenas. O antropólogo Ronaldo de Queiroz que também integra o Grupo Técnico (GT) de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Anacé esclarece a argumentação da PGE. “O que o Governo do Estado diz, em parte, corresponde aos fatos. Houve uma negociação. Por outro lado, o que o cacique coloca também é uma outra parte dos fatos, a de que o Povo Anacé não se resume a essas 163 famílias reassentadas. Então nesse sentido, houve essa desapropriação de pessoas Anacés, que foram pra uma reserva indígena. O problema é justamente o fato de o Governo dar como resolvido uma questão que não é de competência do Governo. O Governo do Estado do Ceará não tem competência pra definir área indígena, quem define, inclusive, é o estudo antropológico”, afirma.
Queiroz reitera existir uma nova negação da existência de um Povo Anacé, cujo direito originário à terra que tradicionalmente ocupa está sendo impactado por esse tipo de projeto. Ele afirma que a Fundação Nacional do Índio e o Grupo Técnico formado por vários entes (Pesquisadores, indígenas e representantes da Funai) não foram consultados. “nesses projetos os governos não abrem o diálogo com quem de fato tem competência para lidar com o tema que é, primeiramente, a Funai e, segundamente, o Grupo Técnico. É muito complicado lidar com esse tema atropelando o processo administrativo, o processo de demarcação de terra está virando uma polêmica pública. Enquanto não se tem uma resposta do GT, enquanto não se tem uma finalização desses estudos essas problemáticas vão continuar”.
Com duras críticas a falta de diálogo com o seu povo, Cacique Roberto finaliza: “Nós fizemos uma cartografia tentando defender ao máximo nossas terras, e agora nossas falas e as cartografias que foram feitas é usada contra nós. É lastimável a gente ter um governo do outro planeta, que não entende a área, a terra, a espiritualidade, que não entende as pessoas que vivem nos seus locais, que fazem parte e que são parte desse local”.
*A reportagem procurou a Funai, mas não recebeu retorno a tempo da publicação da matéria.
Edição: Camila Garcia
Fonte: Brasil de Fato