Para especialistas, nova modalidade de fundo de investimento incentiva especulação financeira sobre ativos fundiários
Jair Bolsonaro (sem partido) deve sancionar, ainda em março, mais uma lei que estimula a entrada massiva do capital estrangeiro na cadeia de valor do agronegócio. O Projeto de Lei (PL) 5191/2020, que aguarda a assinatura do presidente, é conhecido como “PL do Fiagro”, sigla para Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro).
O PL, de autoria do deputado ruralista Arnaldo Jardim (Cidadania), altera a Lei do Fundo de Investimento Imobiliário (FII) de 1993 para incluir os Fiagro. Esse passa a ter a natureza jurídica de um “condomínio”, formado por um conjunto de coproprietários de quotas.
Para o economista Guilherme Delgado, doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), trata-se de um fundo de especulação financeira, e não de investimento de longo prazo.
“A fonte principal de riqueza desses ‘condomínios agropecuários’ são imóveis rurais, que as pessoas vendem aos fundos em troca de quotas de participação ou débitos vencidos de hipotecas que não foram pagas”, explica.
“Os agentes detentores dessas hipotecas, que em geral são bancos, vendem essa hipoteca ao fundo para receber quotas. Portanto, é um fundo baseado na ideia de valorização fundiária, e não na produção.”
A regulação dos Fiagro ficará a cargo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que deve impor regras de transparência, como a apresentação anual de balancetes, além de fiscalizar o cumprimento de responsabilidades sociais, ambientais e de governança.
Após a sanção de Bolsonaro, pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou internacionais, poderão investir em imóveis rurais.
“Seria uma tentativa de burla à lei de aquisição e arrendamento de terras por estrangeiros [Lei 5.709/1971]”, analisa Larissa Packer, advogada socioambiental e integrante da equipe para América Latina da organização internacional GRAIN.
O PL também altera a lei de tributação do mercado de capitais.
“Então, você já tem um estímulo para retirar os investimentos do mercado produtivo e concentrar no mercado financeiro, na aquisição de ativos de renda fixa ou variável, ou de ações”, acrescenta Packer. “Porque a lei brasileira, já há bastante tempo, acaba isentando de imposto de renda alguns desses ativos financeiros, como LCA [Letra de Crédito do Agronegócio] ou LCI [Letra de Crédito Imobiliária].”
Preocupações econômicas
Embora formalmente seja um fundo de investimento, Delgado lembra que o que está em jogo são ativos fundiários.
Como o mercado tem ciclos ascendentes e descendentes, o economista alerta que esses fundos não vão se valorizar permanentemente.
“Vender essas quotas ao chamado investidor estrangeiro, que é a grande pretensão do PL, cria um segundo problema. Porque muitos dos ativos que estamos falando são ativos da natureza, que não foram produzidos”, ressalta. “Quando se persegue a valorização desse patrimônio natural, não se está mobilizando necessariamente uma cadeia produtiva.”
O problema central, do ponto de vista econômico, é que o investidor estrangeiro se torna um credor. Ou seja, cria-se um passivo externo a ser pago em moeda estrangeira – em um momento de desvalorização do real em relação ao dólar.
“Ninguém vai comprar ativos se não estiver visando lucros e dividendos”, ressalta Delgado, que trabalhou por 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Em outras palavras, o setor primário, que teria como papel econômico resolver o desequilíbrio externo, acabaria por agravar o déficit na conta de serviços. O déficit brasileiro na balança de serviços é considerado elevado – em média, US$ 80 bilhões ao ano.
“Quando esse déficit é muito alto, o país sofre um ataque especulativo, como ocorreu no final da década de 1990 no governo Fernando Henrique Cardoso, que também apostou que o capital estrangeiro resolveria todos os problemas do país”, explica o economista.
“O resultado foi uma situação de inadimplência externa e dependência de empréstimos do FMI [Fundo Monetário Internacional] por quase uma década”, completa.
Por que interessa tanto aos ruralistas
O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) para entender o posicionamento e as preocupações dos ruralistas sobre o tema. Não houve retorno até o fechamento desta matéria.
A página da FPA, no entanto, sistematizou aqueles que a entidade considera os principais ganhos com a aprovação do PL do Fiagro, na lógica do mercado de capitais.
“Uma nova modalidade de Fundo de Investimento voltado ao agronegócio permitirá a captação de maior volume de recursos para financiamento de empreendimentos no setor, considerando a contínua e crescente necessidade de recursos”, diz o material, de fevereiro de 2021.
Ainda segundo o material divulgado pela FPA, “a recepção de investimento proveniente da indústria de Fundos terá como consequência o aumento dos níveis de Governança Corporativa no setor e crescente aumento da formalização e profissionalização financeira.”
O PL do Fiagro garante isenção de imposto de renda aos fundos com mais de 50 cotistas e estende a isenção do imposto de renda de pessoa física a todos os títulos do agronegócio.
A limitação é que cada cotista, para ter direito à isenção, não pode ser dono de mais de 10% do rendimento do fundo.
Os rendimentos ou ganhos de capital do fundo, quando distribuídos aos cotistas, terão alíquota de 20%.
“Isso tudo leva a um incentivo muito grande à entrada de capital estrangeiro na cadeia de valor do agronegócio”, analisa Larissa Packer. “A expectativa é que eles possam mobilizar capital fora do Estado para injetar em áreas, principalmente, de vulnerabilidade, que seria a infraestrutura para exportação, principalmente.”
Deputado Arnaldo Jardim, autor do PL do Fiagro e membro da bancada ruralista / Divulgação / Câmara dos Deputados
A advogada socioambiental ressalta que esse investimento não substituirá o papel do Estado, uma vez que a agricultura de exportação no Brasil sempre foi altamente subsidiada, desde a isenção de impostos, por meio da Lei Kandir, à isenção de insumos como agrotóxicos e pesticidas, além do Plano Safra.
O que os ruralistas buscam é solucionar o gargalo de infraestrutura por meio de investimentos privados em dólar, em um contexto de aumento de demanda para produção de alimentos e energia renovável – o que requer grande quantidade de terras.
Histórico
O PL do Fiagro é apenas mais um capítulo da “enxurrada” de leis que propiciam alternativas de investimento estrangeiro direto no Brasil, tendo como garantia de dívida facilitada, principalmente, terra e recursos naturais.
Em setembro de 2019, a chamada Lei da Liberdade Econômica alterou o código civil e a natureza jurídica dos fundos de investimento, tornando possíveis os investimentos não só em ativos, mas em bens e direitos de qualquer natureza.
“Aí, entrariam imóveis rurais, direitos creditórios sobre frações da terra, sobre a safra, e até serviços ambientais”, detalha a advogada Larissa Packer.
Como parte do mesmo arcabouço legal, a Lei do Agro, de abril de 2020, modificou a natureza jurídica dos títulos do agronegócio. O que antes era um título de crédito emitido pelo produtor rural, como garantia futura de pagamento, transformou-se, na prática, em valores mobiliários, ativos financeiros que assumem forma escritural.
Com essa mudança, a emissão dos títulos passa necessariamente por instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central e pela CVM. Ou seja, os títulos tornam-se ativos financeiros, gestionados na bolsa de valores.
A Lei do Agro permitiu ainda que o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA) e o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), que são promessas de pagamento futuro em dinheiro, também possam ser executados de maneira extrajudicial, diretamente no cartório.
Ambos podem ser emitidos em moeda estrangeira, com cláusula de correção cambial em favor de investidores estrangeiros, mesmo não residentes no Brasil. O CRA ainda poderá ser distribuído no exterior por entidade financeira autorizada no país.
“A questão é que, não havendo uma limitação da emissão desses títulos aos estrangeiros, pode haver uma concentração grande da cadeia de valor do agronegócio na mão do capital estrangeiro. Essa é a tendência geral do Fiagro”, alerta Packer.
Segundo a advogada, permitir que investidores estrangeiros invistam em imóveis rurais por meio de fundos, adquirindo quotas, já representa uma ilegalidade frente à lei de aquisição e arrendamento de terras por estrangeiros.
“Embora não remeta à essa lei, no quesito do ativo imóvel rural, os outros ativos sobre títulos do agronegócio acabam permitindo a execução de dívida sobre frações da terra [Cédula Imobiliária Rural] e sobre serviços ambientais [Cédula do Produtor Rural], que podem se consolidar na mão de estrangeiros”, analisa a integrante da organização GRAIN.
“Isto porque a Lei do Agro alterou a lei que limita o acesso a terras por estrangeiros, excluindo os imóveis dados em garantia e em dação em pagamento [acordo entre credor e devedor] do seu escopo, autorizando a execução da propriedade em favor de estrangeiros sem qualquer limite. Portanto, a execução dos títulos do agro, caucionados na terra ou em serviços ambientais, já permitem um acesso direto a terras e recursos naturais por estrangeiros”, completa.
Na enxurrada de novas leis que estimulam a injeção de capital externo no agronegócio, está no horizonte um PL para flexibilização dos limites do acesso à terra por estrangeiros.
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Há divergências dentro do setor sobre essa matéria, e a tendência é que os programas de regularização fundiária avancem antes de o PL ser pautado, para “proteger” em alguma medida o capital nacional.
“Uma parte do agronegócio não quer ficar endividada em dólar com o tipo de câmbio que temos hoje. (…) Nós aproveitamos as exportações, por conta do câmbio, mas ninguém quer importar serviço de financiamento em dólar. Encareceria muito. A execução disso em dólar significaria muita perda, seja de safra, fração de terra ou pagamento em dinheiro”, interpreta Larissa Packer.
Impacto aos camponeses
Diego Vedovatto, advogado e membro do Coletivo de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), lembra que as investidas para flexibilização do acesso a terras pelo capital estrangeiro não ocorrem só via Legislativo ou Executivo.
Em 2015, a Sociedade Rural Brasileira entrou com um pedido para que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecesse a incompatibilidade com a Constituição Federal de dispositivos da Lei 5.709/1971, que dão tratamento diferenciado a empresas nacionais de capital estrangeiro.
O relator Marco Aurélio votou pelo indeferimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 342, confirmando a validade das restrições ao capital estrangeiro. O ministro Alexandre de Moraes pediu vistas, e o caso ainda não foi encerrado.
“Quando se permite que empresas estrangeiras, ou capital estrangeiro em empresas criadas no Brasil, ou a criação de fundos, como o PL do Fiagro sugere, para acesso ainda que indireto à terra, isso significa uma ameaça à soberania nacional”, ressalta Vedovatto. “Porque estamos falando do poder de controlar uma parte significativa do território nacional.”
O conjunto dessas ações, segundo o advogado, tendem a ampliar o assédio sobre as terras dos pequenos proprietários rurais e sobre as comunidades tradicionais.
“Ao ampliar as possibilidades de fundos do capital estrangeiro no país, sem dúvida há um risco de aumento da especulação imobiliária, da tentativa de expulsão dos povos e comunidades dos seus territórios”, afirma o integrante do Coletivo de Direitos Humanos do MST.
“Esse modelo de fundos de investimento é construído justamente para excluir os pequenos agricultores, que não conseguem ter acesso às linhas de crédito e a esse mercado tão restrito”, enfatiza Vedovatto.
Presente de grego
A criação de passivo externo, sem nenhuma perspectiva de um novo ciclo de valorização das commodities, resulta em uma fórmula que Guilherme Delgado chama de “cavalo de Troia”.
“Não tem nenhuma garantia que essa engenharia funcione”, lembra. “Mesmo que o fundo [Fiagro] consiga substituir o sistema nacional de crédito rural, cria-se um problema muito grave, que é a substituição de fontes internas por externas.”
“Quando você traz capital estrangeiro para investimento produtivo, ainda se pode argumentar que são montados novos sistemas produtivos. Agora, quando se traz capital estrangeiro e ele não traz nada, nenhum bem físico real sobre a terra, estamos simplesmente criando um cavalo de Troia para o conjunto da economia brasileira”, finaliza Delgado.
Larissa Packer chama atenção novamente para a importância das disputas em torno da regularização fundiária. Ao legalizar títulos baseados em grilagem, de origem fraudada ou obscura, o governo daria segurança jurídica para os investimentos estrangeiros nessas áreas.
“O que vai ser dado em garantia, na maior parte das vezes, será justamente essa terra pública regularizada como terra privada”, prevê. “É um estoque de terra barata, pública, praticamente doada pelo Estado ao setor para ser destinada ao sistema financeiro, principalmente internacional. É isso que a regularização fundiária vai acabar fazendo: uma injeção de ativos estatais ao setor”, conclui a advogada.
FONTE: BRASIL DE FATO
FOTO: Reprodução / Portal Brasil Empresarial