Pressionados pela mais grave crise sanitária da história do continente, um a um os governos fake vão caindo e o continente tem um duro reencontro com a realidade.
A sucessão de golpes e tentativas de golpe na América Latina obedeceram a um roteiro comum.
Primeiro, o fim do boom das commodities, interrompendo o modelo de crescimento das economias latino-americanas com inclusão social. Depois, o uso intensivo da mídia e das redes sociais para espalhar a sensação geral de mal estar. Finalmente a cooptação do pior do mundo político e jurídico de cada país, através do financiamento de grupos ligados especialmente aos setores de energia, mineração e petróleo.
Com a onda formada, criava-se um clamor na opinião pública que intimidava os não alinhados da Suprema Corte e do Congresso. E levantava-se a bandeira do liberalismo selvagem como a salvação do país contra a corrupção, de acordo com os manuais da Teoria do Choque, presentes na Escola de Chicago dos anos 70 e decifrado nos escritos da cientista política Naomi Klein. Aproveitava-se o momento de choque para negócios de diversas espécies com os novos governantes.
Pouco tempo depois, a fantasia se esfumaça. Pressionados pela mais grave crise sanitária da história do continente, um a um os governos fake vão caindo e o continente tem um duro reencontro com a realidade. E as consequências do excesso de poder atribuído aos Catões ou golpistas vão sendo reveladas, em escândalos sucessivos.
Evo Morales foi destituído por um golpe.
O golpe seguiu o mesmo padrão brasileiro, com Aécio Neves. Terminadas as eleições, com vitória de Evo Morales, a oposição recusou-se a aceitar os resultados. Em seguida, no dia 10 de novembro de 2019, uma auditoria ordenada por Luiz Almagro, secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos) serviu de base técnica para a consolidação do golpe.
Explodiram manifestações por todo o país e houve motins de policiais e militares contra o governo. Naquele dia, consumou-se o golpe de estado na Bolívia.Era uma pesquisa fraudada.
Durante as apurações houve um apagão nos sistemas. Segundo a OEA, a tendência pós-apagão em favor de Morales, não batia com a tendência pré-apagão. Este seria o indício maior de fraude.
Em fins de fevereiro de 2020, um estudo do MIT Election Data and Science Lab constatou que não havia nenhuma evidência estatística de fraude. Em artigo no The Washington Post, os pesquisadores classificaram as conclusões do relatório Almagro de “profundamente falhas”. Os pesquisadores do MIT demonstraram que o relatório da OEA não levou em conta as informações geográficas, isto é, a análise da tendência de votos nas diversas regiões.
“Não considerar informação geográfica é bem ruim. Se olharmos as tendências intermunicipais dos colégios eleitorais com o passar dos anos, elas são bem correlatas com as eleições de 2016”, explicaram eles.
Já era tarde. O laudo da OEA deflagrou a reação dos militares e movimentos de rua, que provocaram 36 mortes.
No dia 13 de novembro, uma obscura ex-apresentadora de televisão do interior, Jeanine Áñez, assumiu a presidência do país. Até três dias antes, era a segunda vice-presidente do Senado. Assumiu a presidência depois da renúncia de cinco senadores. Ela, então, reivindicou o cargo de presidente da República e o Tribunal Constitucional do país concordou. Simples assim.
Evo Morales, primeiro índio a assumir a presidência do país, responsável por uma política de redução das desigualdades, renunciou e pediu asilo no México.
Veio a pandemia e, assim como Bolsonaro, Jeanine se enrolou no combate à doença. Foram marcadas novas eleições, o candidato de Morales, Luiz Arce, venceu por ampla maioria.Esta semana, Jeanine foi presa, acusado de “terrorismo, sedição e conspiração”. A polícia encontrou Jeanine escondida debaixo da cama.
Sua primeira declaração: “Assim são os socialistas: usam mecanismos democráticos e se aferram ao poder, e depois enganam a gente, cooptam instituições, acaba a institucionalidade democrática”. Deu início a uma perseguição implacável contra seguidores do governo deposto.
Vários generais, coronéis e políticos da extrema-direita já estão sendo conduzidos aos cárceres em La Paz, El Alto, Cochabamba, Sucre, Oruro, Tarija e Santa Cruz de La Sierra.
No dia 23 de janeiro, repetiu-se a farsa na Venezuela. O presidente da Assembleia Nacional, e líder da oposição, Juan Guiadó, se autoproclamou presidente da República e foi imediatamente reconhecido pelos governos Bolsonaro, do Brasil, e Trump, dos Estados Unidos, mais Colômbia, Paraguai, Peru, Canadá, Equador e Chile. E o indefectível Luis Almagro:
“Nossas felicitações a Juan Guaidó como presidente interino de Venezuela. Tem todo nosso reconhecimento para impulsionar o retorno do país à democracia”, escreveu.
Em nota, o Itamarati disse que “apoiará política e economicamente o processo de transição para que a democracia e a paz social voltem”.
Há muitas críticas consistentes contra o regime de Nicolas Maduro. Assim, como contra presidentes de direita no Chile, Paraguai, Colômbia e Brasil.Venezuela virou alvo pelo fato da Rússia e China estarem investindo pesadamente no país, que se tornou um enclave na América Latina abrindo espaço para um aumento da influência de novas potências hegemônicas.
Chegou-se ao cúmulo de um tribunal britânico conferir a Guiadó o controle de 30 toneladas de ouro depositadas no Banco da Inglaterra pelo governo venezuelano. Foi preciso que, no dia 5 de outubro de 2020, a Corte de Apelação suspendesse a decisão antes de novo julgamento.
Em 17 de dezembro de 2019, The Washington Post j mencionou o desencanto dos apoiadores americanos com Guaidó. A reportagem citava denúncias de um site venezuelano, Armando.info, de que aliados de Guaidó estavam cedendo a propostas de suborno de Maduro.
No dia 27 de janeiro passado, os 27 países da União Europeia tiraram de Guaidó o reconhecimento como “presidente interino”. Depois de se referir a Guaidó como “político em final de mandato”, o comunicado diz que “única saída para a crise na Venezuela é retomar as negociações políticas imediatamente e estabelecer com urgência um diálogo liderado pela Venezuela que leve a um processo de transição com credibilidade, inclusão e transparência, incluindo eleições locais, legislativas e presidenciais”.
No dia 1o de maio de 2020, a agência AP denunciou que um ex-Boina Verde havia sido contratado para uma operação militar visando derrubar Nicola Maduro. E a operação havia fracassado. Segundo o relato, cerca de 300 voluntários, fortemente armados, invadiriam a Venezuela vindos do extremo norte. Atacariam bases militares e incitariam a revolta popular, que culminaria com a prisão de Maduro.
O líder da conspiração era Jordan Goudreau, ex-combatente no Iraque e no Afeganistão. Depois de ir para a reserva, inclusive com acusações de corrupção, fundou uma empresa de segurança privada. a Silvercorp, e passou a operar como agente de desestabilização política de diversos países.
O contato na Venezuela era um major-general, Cliver Alcalá, com ligações com o narcotráfico. E o financiamento do golpe foi garantido com a promessa de acesso preferencial para negociar acordos nos setores de energia e mineração com um eventual governo Guiadó.
Aparentemente Guaidó não entrou na aventura. Mas ela serve para demonstrar a soma de interesses que ajudam a financiar golpes de Estado. E os campos preferenciais são energia e mineração.
Quando Bolsonaro venceu as eleições de 2018, Luis Almagro o saudou dizendo que ele passava “mensagem de verdade e paz”. E disse que poderia contar com a OEA para trabalhar pela democracia, direitos humanos, segurança e desenvolvimento na região.Em agosto de 2020, Almagro demitiu o secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Paulo Abrahão, apesar de ele ter sido reeleito por unanimidade. Foi um fato inédito na história da OEA, Abrahão se preparava para divulgar um relatório sobre milícias e ataques a minorias no Brasil.O ato foi apoiado pelo Itamarati, que também antecipou apoio à reeleição de Almagro para a secretaria geral da OEA. Em 2020, a OEA de Almagro foi convidada por Luis Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para fiscalizar as eleições municipais brasileiras.
Na campanha do impeachment, a oposição parecia uma banda de música com uma partitura só. Todos – de Temer-Cunha a Serra-Aécio – com o mesmo discurso da “ponte para o futuro”. Todos eles – Temer, Serra, Aécio, Cunha – com um histórico de suspeita de enriquecimento através da política.
Como explicar que o mais fisiológico dos partidos, o PMDB, que jamais teve posições programáticas, se transformasse, de repente, no principal arauto do programa “Ponte para o Futuro”?
Em 21 de setembro de 2016, dia seguinte da sua fala na ONU defendendo a legalidade do processo de impeachment de Dilma, Michel Temer afirmou que Dilma caiu porque havia recusado as propostas do PMDB no documento “Ponte para o Futuro”.
A afirmação foi feita em evento do American Society.
“Há muitíssimos meses atrás, nós lançamos um documento chamado ‘Ponte para o Futuro’ porque verificávamos que seria impossível o governo continuar naquele rumo e até sugerimos ao governo que adotasse as teses que nós apontávamos naquele documento”.
Consumado o impeachment, houve uma corrida surda entre Eduardo Cunha e José Serra, para saber quem apadrinharia a nova lei do petróleo. O principal pitbull de Serra, Aloysio Nunes, foi despachado para os Estados Unidos, para uma reunião de emergência com senadores democratas.
Durante todo o período do impeachment, todas as votações relevantes do STF, submetidas ao tal algoritmo do Supremo – que, teoricamente, sortearia os relatores – caíram com Ministros ostensivamente a favor do impeachment. Todas as votações centrais foram em direção à consolidação do golpe. A explicitação máxima da politização do julgamento foi o voto de Rosa Weber a favor da prisão em 2a instância. Sua convicção era contra a prisão em 2a instância, disse ela em seu voto. Mas voto a favor para acompanhar a maioria. Como ela tinha o voto de desempate, a maioria seria na tese que ela votasse,
Tem-se agora o país enfrentando a maior tragédia sanitária da história, 2 mil pessoas morrendo por dia, um governo genocida, sem a menor preocupação com as mortes e sem a menor capacidade de domar a doença. Além disso, acenando desde já com golpe em 2022, caso não venda as eleições.
O choque de realidade, agora, faz com que o país volte ao leito institucional, ao bom senso para impedir a consolidação do golpe militar-fundamentalista.
Espera-se que não tenha chegado tarde.
FONTE:GGN
FOTO:REPRODUÇÃO