Especialistas em Ciências Políticas comentam alguns dos principais acontecimentos da política brasileira no ano
2023 marcou o início de uma guinada na política brasileira após um ciclo presidencial nas mãos da extrema direita. Aclamado no primeiro dia do ano em uma posse histórica em Brasília, o presidente Lula veria a fúria golpista uma semana depois, em atos antidemocráticos que chocaram o país e o mundo. Uma dicotomia que seguiu latente nos meses seguintes e deu continuidade à polarização política iniciada há uma década.
No início da jornada para restabelecer o pacto democrático e as políticas públicas, atacadas ou ignoradas pelo seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), Lula teria se deparado com três grandes “frentes de confrontação”, conforme enumera Rodrigo Lentz, professor de Ciências Políticas da Universidade de Brasília: a econômica, a institucional – sobretudo perante o Congresso – e a dos militares.
“E o que o governo fez diante dessas três frentes? Optou por priorizar a econômica e sacrificar, na medida do possível, o que fosse necessário do ponto de vista da relação dos militares e do Congresso. Então, acho que, do ponto de vista econômico, o foco do governo se mostrou efetivo”, opina o analista, em referência à promulgação da reforma tributária, do arcabouço fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), super-trunfos conduzidos pelo ministro da economia Fernando Haddad.
Para Marcus Ianoni, professor de Ciências Políticas da Universidade Federal Fluminense, o balanço é positivo, apesar das muitas concessões aos políticos do centrão e da direita. Além de alterações substanciais nos textos da reforma e da LDO, ele também lembra da nomeação de aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-SE), para ministérios e a concessão bilionária de emendas parlamentares.
“O governo ganhou votações importantes e perdeu outras, por exemplo, o do marco temporal. Não é fácil lidar com esse Congresso conservador, mas eu diria que é surpreendente como o governo está conseguindo conviver com esse pessoal sem ser massacrado. Imagine se o governo tivesse uma situação como a que Dilma enfrentou quando o presidente da Câmara era o [Eduardo] Cunha? Imagina se o Lira mantivesse a mesma postura do Eduardo Cunha agora com o Lula?”, questiona.
Nessa relação do governo com o Parlamento este ano, que há muito tempo já superou os arranjos do presidencialismo de coalizão do passado recente, o relatório do Orçamento da União de 2024 quintuplicou o fundo eleitoral para as eleições municipais: de R$ 940 milhões, a cifra saltou para R$ 4,96 bilhões. Embora tenha conseguido manter a maior parte do valor destinado ao PAC, o programa de moradias do governo sofreu redução considerável e os recursos destinados para emendas parlamentares individuais saltou de R$ 37 bilhões para R$ 49 bilhões.
“O chamado semipresidencialismo não é algo do passado, não é uma escolha do governante; é um processo que foi se estruturando a partir da crise política de 2013. Então, eu acho que o governo talvez aqui tenha tomado o choque de realidade, porque ele está sendo obrigado a entender que essa relação com o legislativo não voltará à normalidade”, decreta Lentz.
Tentativa de golpe ainda reverbera nos Poderes
Por seu ineditismo e contundência, os atos antidemocráticos de 8 de janeiro ainda estão longe de ser esquecidos, ainda que não sejam poucas as pressões para que isso aconteça. Durante a última reunião ministerial do ano, no dia 20 de dezembro, Lula anunciou que um ato será realizado no aniversário da intentona golpista, ajudando a preservar a memória sobre a capacidade destrutiva do bolsonarismo radical à democracia.
Apesar dos reveses, com direito à prisão em flagrante de mais de 2 mil pessoas e a posterior condenação de 20 delas apenas nos julgamentos iniciais, a extrema direita segue estridente nas redes sociais e no cenário político através de novos e velhos expoentes. O próprio Bolsonaro, tornado inelegível por oito anos em sucessivas decisões da Justiça Eleitoral, também foi incluído no inquérito no STF sobre os atos golpistas como possível mentor intelectual, além de responder a vários outros processos embaraçosos, como o que apura se houve apropriação ilegal de joias presenteadas durante viagens oficiais.
Em ato simbólico no dia 9 de janeiro, Lula se reuniu no Palácio do Planalto, cujas dependências ainda apresentavam as marcas do vandalismo, junto a ministros do STF e aos presidentes do Senado e da Câmara. Para Lentz, nem os gestos do presidente e nem os atos de Flávio Dino, então recém-empossado como ministro da Justiça, tornaram as ações do governo menos “pragmáticas”, relegando o assunto à opinião pública e ao Judiciário.
“O governo, por conta da sua fragilidade no Congresso e por conta da adesão aos atos de uma boa parcela dos parlamentares, inclusive na direita tradicional, deixou ao Judiciário cumprir o papel central de impedir uma impunidade. Mas o que acontece: a responsabilização do 8 de janeiro é usada politicamente para condicionar o comportamento também desses atores responsáveis, como Jair Bolsonaro, o bolsonarismo e a direita tradicional”, aponta.
Ianoni, por sua vez, destaca o desgaste do Exército, cuja cúpula teria sido conivente com o acampamento antidemocrático em frente ao quartel-general de Brasília, e também os efeitos políticos da pressão pública. “Houve repúdio de uma parte importante da sociedade civil, inclusive internacional e de governos externos. O Congresso, que a gente sempre pode criticar, tentou limitar os trabalhos da CPI, mas ao mesmo tempo produziu um relatório muito consistente. Além da atuação do STF, que começou a aprender os participantes do 8 de janeiro, mostrando que há uma resistência democrática”, resume.
Até agora, nenhum militar de alta patente foi responsabilizado e tudo indica que não será, tendo em vista os acenos feitos por Lula para pacificar as relações com as Forças Armadas, mesmo tendo trocado os comandantes das três forças. Para o professor da UnB, a história demonstra que a “pactuação” com os militares não impede chances de novas investidas golpistas no futuro.
“As forças armadas estão numa posição bastante confortável do ponto de vista de reconstruir a sua imagem, de preservar uma série de autonomias, o que a curto prazo mostra resultados em conter insubordinação e ações de desestabilização, mas a médio prazo, essa conta chega como sempre chegou”, afirma.
País volta para os trilhos e às mesas de negociação
Se em janeiro os golpistas faziam piruetas e arruaça no plenário da Câmara dos Deputados, em dezembro o mesmo local foi palco de um novo marco para a democracia. Foi o que disse Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso, em seu discurso de abertura da promulgação da reforma tributária, no dia 20, sentado na tribuna ao lado de Lula, de Luís Roberto Barroso, presidente do STF, de Lira, além dos relatores dos relatores das PECs em ambas as casas e do ministro da economia Fernando Haddad.
Derrotado nas eleições de 2018, Haddad e o autor da reforma, Bernardo Appy, foram os nomes mais celebrados do dia até por opositores e pela imprensa mais afeita ao liberalismo. A grande vitória do governo no seu ano de estreia finalmente se daria no campo econômico, considerado fundamental para a estabilidade política e implementação dos grandes programas do governo, também encerrou uma tramitação no Parlamento arrastada por 30 anos.
“Nós tivemos a aprovação histórica de uma reforma tributária com uma série de limitações, é verdade, com poucos avanços do ponto de vista da redução da desigualdade social e a produção de uma justiça tributária, porém houve um avanço. Também tivemos resultados econômicos positivos em termos de emprego, alta da arrecadação, controle da inflação, ou seja, a própria expectativa das pessoas é melhor sobre a economia”, pontua Lentz, fazendo referência à elevação da nota do Brasil por agências de classificação de riscos internacionais.
Outros passos importantes para o programa de governo eleito foram dados com a retomada de grandes programas sociais, como o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida, o Mais Médicos e de educacionais e de incentivo à leitura. Para o agronegócio, que de modo geral atuou como opositor a Lula, foi destinado valor recorde do Plano Safra – também estendido à agricultura familiar e campesina – o que não impediu o avanço de pautas-bomba, como o PL do Agronegócio e a própria tese do marco temporal.
Na avaliação de Ianoni, o impulso da agenda ambiental, acompanhado da redução dos índices de desmatamento na Amazônia e a fiscalização ao garimpo ilegal, também ajudou a devolver o Brasil a lugar de destaque no cenário internacional. “Há dados aí sobre diminuição de desmatamento, de queimadas e do uso da energia poluente das termelétricas. (…) Há muita expectativa do mundo com relação ao Brasil na questão ambiental, eu acho que o governo está procurando fazer seu papel, tendo como ministra [do Meio-Ambiente] a Marina Silva, que é um nome internacionalmente reconhecido”, defende.
Ao longo de 2023, Lula foi recebido com pompa nos principais fóruns internacionais, atraindo os holofotes ao cobrar as potências a investir em preservação ambiental, transição energética e no enfrentamento à desigualdade social. Tanto para fora quanto para dentro, também procurou agregar a necessidade de defesa das instituições democráticas, mesmo que mandando recados em nome da independência e lisura, como fez em discurso na posse de Paulo Gonet à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR)
Para o ano que vem, é aguardado um novo embate nas urnas entre o campo progressista e a extrema direita em eleições municipais turbinadas em dinheiro e feridas abertas na internet. “Acho que será um grande termômetro, principalmente nas grandes cidades, da correlação de forças na sociedade a respeito do 8 de Janeiro. Nós temos, em tese, um bolsonarismo enfraquecido, vindo de uma derrota importante, mas plenamente vivo”, alerta Lentz.
Edição: Rodrigo Durão Coelho
FONTE: BRASIL DE FATO