Em conversa com o BdF, Francisco Funcia afirma que depois da retomada de 2023, setor precisa repensar custeio
Após um período de perdas consideráveis, durante os anos em que vigorou o teto de gastos, o Sistema Único de Saúde (SUS) inicia 2024 com expectativa objetiva de retomada de investimentos. Ainda assim, é preciso buscar uma nova forma de financiamento, que desatrele o setor dos altos e baixos da economia.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, Francisco Funcia, afirmou que o caminho está aberto para a construção de uma proposta de recuperação de perdas. Ela pontua, no entanto, que o processo só será possível com diálogo entre diferentes áreas do governo e controle social.
“Depois de seis anos – especialmente os últimos quatro, em que estrutura governamental e as políticas governamentais da área social foram abandonadas – temos que caminhar. O único caminho possível é que haja um diálogo da área econômica do governo com a área da saúde e com o chamado controle social, que é expresso, representado pelo Conselho Nacional de Saúde.”
Na conversa, Funcia também fez uma leitura dos desafios de 2023, ano em que a saúde no Brasil esteve na iminência de ter o pior orçamento da história. O declínio previsto no planejamento deixado pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) tinha potencial de ampliar o esgotamento do setor, que já era realidade desde que Michel Temer (MDB) instituiu o teto de gastos, em 2016. A Emenda à Constituição (EC) 95 congelava os investimentos sociais por vinte anos.
“Nós teríamos, em 2023, uma asfixia financeira brutal no financiamento de todos os municípios e estados brasileiros. Dois terços do orçamento do Ministério da Saúde são transferências para esses entes. Por definição, as ações do SUS são descentralizadas. Está Constituição Federal, o financiamento é tripartite e as ações se dão no âmbito do município e dos estados. O Brasil perdeu 70 bilhões de reais para o SUS de 2018 a 2022 por causa da regra da EC 95. [Esse montante] traria um acréscimo de mais 20 bilhões de perdas se nada fosse feito e fosse mantida a proposta original do governo passado.
Embora o risco não esteja mais presente para 2024, o professor avalia que ainda é preciso estabelecer mecanismos que tragam estabilidade aos investimentos em saúde e um novo piso. “Além da reposição das perdas, nós temos que buscar uma nova fórmula de financiamento que fique desatrelada da dinâmica econômica. Temos que ter fatores que levem em conta o que a própria legislação define. O financiamento tem que dar conta do atendimento, das necessidades de saúde da população.”
Confira os principais pontos da conversa a seguir ou ouça a íntegra da entrevista no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Saindo do sufoco
“O atual governo começou a sua gestão, no que diz respeito ao financiamento da saúde, antes mesmo de tomar posse. Em dezembro de 2022, quando o Congresso Nacional ainda estava votando o projeto de lei orçamentária para 2023, havia essa situação gravíssima de uma peça orçamentária de R$ 150 bilhões de reais encaminhada pelo governo anterior para a saúde. Era cálculo da regra do piso da Emenda Constitucional 95, conhecida como teto das despesas. Se essa proposta não fosse alterada, significaria uma asfixia financeira brutal no financiamento da saúde de vários municípios e estados.
Por definição, as ações do SUS são descentralizadas. Está na Constituição Federal, o financiamento é tripartite e as ações se dão no âmbito do município e dos estados. O Brasil perdeu 70 bilhões de reais para o SUS de 2018 a 2022 por causa da regra da EC 95. (Esse montante) traria um acréscimo de mais 20 bilhões de perdas se nada fosse feito e fosse mantida a proposta original do governo passado
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, antes mesmo de tomar posse, teve uma articulação política com o Congresso Nacional. Entre as medidas importantes para estancar o desfinanciamento do SUS, a decisão resultante dessa articulação foi aumentar o orçamento do Ministério da Saúde para 2023 para 170 bilhões, em vez dos 150 bilhões propostos anteriormente.
Esses 20 bilhões a mais no orçamento do Ministério da Saúde permitiram uma aproximação dos valores da regra suspensa pela Emenda 95, que era de 15% da receita corrente líquida. A combinação dessa medida com a PEC da transição criou condições para a revogação da Emenda 95, que congelava os recursos do SUS no valor de 2017. Isso representou um grande avanço no financiamento do SUS, resgatando o que era aplicado até 2016, próximo aos 15% da receita corrente líquida.
A revogação da Emenda 95 foi fundamental, porque ela não permitia que se fizesse políticas fiscais e, por meio dos gastos públicos, financiar o crescimento do país. O país ficou estagnado, porque se privou o estado da capacidade de investir no social e infraestrutura. A PEC da transição permitiu a revogação da Emenda 95 ocorreu a partir de agosto ou setembro de 2023.”
Ainda é preciso ir além
“Precisamos considerar duas coisas. Primeiro, 15% da receita corrente líquida não eram e nunca foram o que os especialistas em economia da saúde, o campo progressista do SUS, e a reforma sanitária pregavam. Em 2013, o Conselho Nacional de Saúde protocolou um projeto de lei de iniciativa popular, o PLP 321 de 2000, com 2,2 milhões de assinaturas auditadas, propondo que o piso fosse 10% das receitas correntes brutas, o que equivaleria a cerca de 19,4% da receita corrente líquida. Ou seja, 30% acima do valor dos 15%.
No momento histórico em que o Brasil resgatou a democracia com a vitória do presidente Lula, restabelecer os 15% da receita corrente líquida em dezembro foi fundamental. Foi o primeiro passo para retomar a discussão por mais recursos no SUS a partir de 2023. Já estaria garantido um aumento de R$ 20 bilhões, o que corresponderia a R$ 172 bilhões, se a receita ficasse nos valores estimados no orçamento.
Mas não era essa a meta. A luta histórica é para reduzir a defasagem na aplicação dos gastos públicos em comparação com os gastos privados. O Conselho Nacional de Saúde e a Conferência de Saúde de 2017, propôs que os gastos públicos em saúde equivalessem a cerca de 6% do PIB, com pelo menos 3% do PIB provenientes do governo federal, metade do total e que o gasto público corresponda a pelo menos 60% do gasto total em saúde, similar aos países desenvolvidos;
A aplicação de recursos públicos em saúde no Brasil está muito abaixo dos países desenvolvidos, onde os gastos públicos são superiores aos gastos privados. No Brasil, os gastos privados são maiores que os públicos, e isso precisa ser considerado para atender mais de 200 milhões de pessoas.
Outro ponto relativo a 2023, foi que a correlação de forças políticas ainda está desfavorável ao governo atual. Há uma pressão do chamado mercado muito forte. Se entende que o gasto público é ruim e que o ajuste fiscal, pelo lado da redução da despesa, precisa continuar.
Então, infelizmente, a reforma fiscal, que foi aprovada pela lei 200, ao mesmo tempo que foi um avanço por permitir que o gasto público volte a crescer e não fique congelado como estava na EC 95, a margem de crescimento desse gasto público ficou muito baixa. O máximo que pode crescer – tirando algumas exceções, e nessas exceções, infelizmente não estão nem saúde nem educação – é 2,5% ao ano. Combinado com metas de déficit primário zero e meta de déficit primário superavitária nos próximos anos, zerar o déficit primário e também gerar superávit.
Essa é uma contradição que se colocou, ao mesmo tempo que possibilitou o crescimento do gasto público, a correlação de forças políticas conservadoras, com predomínio conservador, ainda conseguiu impor restrições ao financiamento das políticas sociais em geral e da política de saúde, com esse crescimento limitado de 2,5% ao ano.
Começam, inclusive, a surgir técnicos do governo em entrevistas dizendo que é preciso rever o piso constitucional da saúde e da educação e que isso pode comprometer o cumprimento das metas fiscais. Então, contraditoriamente, mais para o final do exercício, se coloca um certo risco de como ficará a garantia do financiamento adequado e suficiente da saúde nos próximos anos.”
Novos caminhos
“Em 2024, o orçamento já está com R$ 218 bilhões, o que representa 48 bilhões a mais. Está correto e não há nenhuma dúvida, ninguém está discutindo que é 15% da receita corrente líquida nesse momento daquilo que for efetivamente arrecadado no ano de 2024.
A preocupação que abrimos para 2024 é com essas falas que aconteceram no segundo semestre de de alguns integrantes da área técnica do governo, da área econômica do governo, em que apontam para a necessidade de rediscutir o piso.
Não dá para ter o piso dependente do comportamento da receita. Nós da ABES, inclusive, temos um documento com uma proposta de nova regra de piso, para que o piso não fique condicionado à essa dinâmica econômica. Porque quando a receita cresce, é porque a economia está crescendo e quando a receita cai, é quando a economia está em crise.
Quando a economia está em crise, aumenta mais a demanda pelos serviços de saúde. Não faz sentido ter menos recursos para o SUS. Temos uma proposta de nova regra de financiamento do SUS para que possamos ter estabilidade nesses valores, para não ficar refém da dinâmica econômica. Há uma discussão ainda muito amarrada de uma política fiscal contracionista, ou seja, uma política fiscal de retração, que dificulta, que impede o crescimento econômico.
O que nos deixa um pouco menos preocupados é o fato de o presidente Lula continuar coerente com aquilo que afirmou na época da campanha eleitoral e depois que tomou posse, de que saúde não é gasto, saúde é investimento. No segundo semestre do ano passado, ele também fez comentários que deixam claro que uma meta fiscal não pode impedir o atendimento às necessidades da população. A fala do presidente nos deixa um pouco mais confiantes de que não teremos retrocesso.”
Diálogo e participação popular
“O orçamento do ano de 2024 é para ser é celebrado no contexto em que se coloca, que ainda é um processo de mudança. Depois de seis anos – especialmente os últimos quatro, em que estrutura governamental e as políticas governamentais da área social foram abandonadas – temos que caminhar. O único caminho possível é que haja um diálogo da área económica do governo com a área da saúde e com o chamado controle social, que é expresso, representado pelo Conselho Nacional de Saúde.
Por que que eu falo isso? O Conselho Nacional de Saúde tem representação de gestores, trabalhadores do SUS e usuários. A lei 8142 criou os conselhos de saúde e as conferências de saúde como a expressão da participação da comunidade no SUS, que é uma diretriz constitucional. Nesse sentido, o caminho está aberto para se construir um plano de recuperação das perdas que o SUS teve.
Além da reposição das perdas, nós temos que buscar uma nova fórmula de financiamento que fique desatrelada da dinâmica econômica. Temos que ter fatores que levem em conta o que a própria legislação define. O financiamento tem que dar conta do atendimento, das necessidades de saúde da população. Para isso temos parâmetros internacionais que servem de referência.
Na proposta que a Associação Brasileira de Economia da Saúde fez, chegaríamos a, no mínimo, R$ 1,1 mil per capita de piso federal da saúde. Há várias possibilidades para se chegar a um número per capita capaz de ser corrigido ao longo do tempo por fatores que leve em conta, não só atualização, mas também fatores que caracterizam é aquilo que nós chamamos de necessidades de saúde da população.
Por exemplo, a população idosa cresce está crescendo em um ritmo muito mais acelerado que o crescimento médio da população. Já temos estudos que mostram que o custo do tratamento e da atenção à saúde da população idosa é maior do que das demais faixas etárias. Então, precisamos ter um fator que leva em conta esta mudança do perfil demográfico.”
Retomada e avanço
“Todo o avanço tecnológico em termos de equipamentos, em termos de medicamentos, que está muito relacionado ao complexo econômico industrial da saúde, também requer investimentos. O Brasil já ficou atrasado muitos anos. Nós vimos o que aconteceu na pandemia com a vacina. Não tínhamos nenhuma possibilidade a não ser importar vacinas.
Precisamos resgatar a nossa capacidade de produção. O complexo econômico industrial da saúde é um meio, inclusive, de garantia de soberania sanitária diante cenários que os sanitaristas já estão colocando que teremos novamente, como as epidemias e pandemias. Que possamos estar preparados e não sair correndo para pagar o incêndio depois que a casa começou a pegar fogo. Vamos nos estruturar e nos preparar.
Temos que investir mais na atenção primária. Temos que fortalecer e ampliar o número de equipes de saúde da família, para com isso melhorar as condições de saúde da população. Temos que melhorar toda a parte de equipamentos, da retaguarda hospitalar. Temos uma série de coisas que demandam recursos.
É por isso que saúde não é gasto, por isso que saúde é investimento. Porque a população com mais saúde aprende mais, produz mais e, portanto, contribui decisivamente para o crescimento econômico.”
Edição: Thalita Pires
FONTE: BRASIL DE FATO