O Brasil nunca teve tantos presidentes em evidência. Se antes toda a Nação se voltava para o presidente da República, agora se ocupa também dos presidentes da Câmara e do Senado. O fato é que o Poder Legislativo resolveu reduzir a delegação de poderes que a Constituição concedeu à Presidência da República e aumentou os próprios poderes em detrimento do poder Executivo. O chefe do Poder Executivo, eleito diretamente pela maioria do povo, parece ser, agora, gigante, mas com “pés de barro”.
Alexandre Sampaio Ferraz* e
Neuriberg Dias**
O presidente da República perdeu grande parte da capacidade de nuclear o governo, embora tenha mantido a responsabilidade pela sua condução. Alguns dos seus principais recursos de poder foram “recalibrados” pelos parlamentares, aumentando a dependência do Executivo em relação ao Legislativo para aprovação de qualquer matéria legal, e inclusive determinar a alocação de recursos das políticas governamentais.
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Nem mesmo a palavra final sobre a própria estrutura do Poder Executivo permaneceu na mão do presidente da República, como ficou claro no caso da Funasa. A queda nas Taxas de Sucesso e Dominância do Poder Executivo no processo legislativo ilustram bem esta transformação. Veja o gráfico.1
Taxas de Sucesso e Dominância do Poder Executivo
Fonte: Monitor Legislativo do Observatório do Legislativo Brasileiro
O ano de 2023 não foi diferente. Levantamento do DIAP mostra que 71% das proposições convertidas em lei tiveram origem no Legislativo e apenas 26% no Executivo. O Poder Legislativo, agora empoderado, ganhou proeminência no debate político.
Nada pode ser aprovado pelo Executivo à revelia do Congresso. Mas o Parlamento pode aprovar sua pauta à revelia do Executivo. Inclusive, derrubando vetos do presidente da República, que viu o poder desta “ferramenta” ser reduzido com as mudanças no Regimento Interno do Congresso, em 2013.2
O governo Lula amargou 2 derrubadas importantes de veto no fim de 2023: o da desoneração da folha e a do marco temporal.
Até mesmo na aprovação do Orçamento da União, o Legislativo tem a palavra final, podendo modificar e emendar a proposta original com grande discricionariedade. Este poder aumentou com a aprovação das emendas impositivas, que tiraram do Executivo o controle sobre empenho e execução dos recursos orçamentários.
Acontece que no Brasil, o Legislativo é bicameral, e possui, portanto, 2 presidentes, cada 1 com seu partido, sua coalizão e propósito particular — e diferentes “agendas” para o País.
O País se movimenta como hidra de 3 cabeças. Uma é eleita diretamente pelo povo, as outras 2, de forma indireta, pelos seus pares. Assim, Lula assumiu a Presidência da República, com mandato de 4 anos para implementar o projeto vitorioso nas urnas. Apesar do apoio da maioria do povo brasileiro, seu plantel na Câmara e no Senado não garante os votos para aprovar leis ou emendas à Constituição, estabelecer a estrutura do Executivo ou nomear os ocupantes dos cargos estratégicos.
Na verdade, o “núcleo duro” da coalizão do governo, aqueles que estavam juntos mesmo antes do primeiro turno, não chega a 1/4 dos votos na Câmara e 1/5 do Senado.
O presidente Lula poderia ter governado com a coalizão mínima e coesa, suficiente para afastar a possibilidade de impeachment. Mas montou ampla coalizão ministerial, com 12 partidos, somando cerca de 65% dos votos na Câmara.
A inclusão de novos sócios implicou não apenas a renegociação do projeto vencedor nas urnas, mas também no diálogo permanente das decisões do governo com esses partidos e respectivas lideranças. Nesta construção dos rumos do governo, o presidente da República e seu partido sempre procuram esticar a corda para trazer a coalizão para sua posição, mas com o cuidado para não romper o compromisso com a manutenção da coalizão de governo.
O problema é que “as bases institucionais do presidencialismo de coalizão” já não servem de alicerce para o Executivo comandar o governo, pelo menos não como demostrado por Fernando Limongi no trabalho clássico dele sobre o funcionamento do sistema político brasileiro.3
Nem por isso, podemos dizer que as teses “americanistas”, que afirmam que o presidencialismo multipartidário de coalizão está fadado ao fracasso e que a disputa entre Executivo e Legislativo é incontornável, prevaleceram. Ao que parece, a disputa central ainda se dá entre governo e oposição, e não entre os poderes, e isso depende em parte, ainda, da própria capacidade de articulação política do presidente da República.
Os presidentes da Câmara e do Senado não podem ser reeleitos “em uma mesma legislatura”, mas podem ser reeleitos na legislatura seguinte. E tanto o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), quanto o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foram reeleitos com esta “brecha” no artigo 57 da Constituição para 1 segundo biênio, com maiorias folgadas.
Com mandato de 2 anos, ambos encerram os respectivos mandatos em fevereiro de 2025, quando nova eleição agitará a República. O melhor para Lula será eleger aliado para ambas as posições, mas não será fácil viabilizar candidatura “raiz”, com a composição atual do Legislativo.
O presidente da República pode até governar sem o apoio do Legislativo, mas corre o risco de não aprovar nenhuma lei ou mesmo ver decretos presidenciais anulados4, além de não definir sequer o Orçamento, vez que é o Congresso que tem a palavra final sobre a LOA (Lei Orçamentária Anual). E ainda há o risco da convivência com a possibilidade do impeachment. Se Lula não conseguir viabilizar 1 aliado nas presidências do Senado e da Câmara, sabe que pelo menos deve evitar a eleição de 1 inimigo.
Os presidentes da Mesa do Senado e da Câmara são poderosos. Eles controlam a pauta a ser discutida nas respectivas casas, decidem o que vai ou não ser votado, designam os relatores das proposições em tramitação, controlam a distribuição das matérias para as comissões permanentes e temporárias e nomeiam os respectivos presidentes dessas.
O presidente do Senado tem, ainda, a prerrogativa de comandar a Mesa do Congresso.
O novo governo não reverteu esta tendência. Em 2003, 71% das leis aprovadas foram de autoria dos próprios parlamentares, contra 26% propostas pelo chefe do Executivo. É verdade que o presidente da República ainda pode editar medidas provisórias, mas sem a força que tinham até 2001, e pode pedir urgência para os projetos do governo, o que impõe a análise ao Legislativo, sob pena de trancar a pauta em até 45 dias. Mas, agora, é muito mais dependente das 2 casas e dos respectivos presidentes.
Não basta ter o apoio apenas da Câmara ou do Senado. Isso porque, em caso de discordância, 1 Casa pode bloquear qualquer iniciativa aprovada pela outra. O impasse não é inevitável, é verdade, mas passou a ser mais provável do que nos primeiros anos da Constituição de 1988, quando o receio da paralisia decisória ainda pairava sobre os legisladores e os parlamentares se preocupavam com a governabilidade de 1 País em ruinas.
A Constituição de 1988 definiu o pacto institucional da “Nova República”, como ficou cunhado o processo pós-ditadura (1964-1985). O arcabouço legal erguido pelos constituintes buscou soluções para os problemas do arranjo institucional do período democrático anterior (1946-1964), que teriam contribuído para que o embate entre as forças políticas desaguasse no golpe civil-militar de 1964.
O reequilíbrio entre os poderes da República foi decisivo para a governabilidade do País e a sobrevivência do regime democrático. O Poder Executivo foi reforçado em relação ao Poder Legislativo, mas a grande delegação de poderes nunca foi tão longe a ponto de permitir que o presidente da República vestisse a roupa de ditador.
Ao contrário, conforme o País foi resolvendo os problemas, o Poder Legislativo tratou de rever o arranjo institucional, reduzindo a delegação de poderes ao Executivo.
Até 2023, foram 25 emendas à Constituição, que alteraram o funcionamento do Sistema Político, sem contar as inúmeras mudanças nos regimentos internos do Senado, Câmara e Congresso.
O Poder Legislativo pode dobrar a aposta e seguir o caminho das reformas institucionais reduzindo os poderes da Presidência da República. A Constituição democrática é obra viva, com poucas regras “imutáveis”, que não podem ser modificadas por emendas constitucionais. E nada nos garante que o engenho dos políticos contribua para o aperfeiçoamento do sistema e não seu fim.
(*) Economista e doutor em ciência política. Técnico do Dieese.
(**) Jornalista, analista político, diretor de Documentação do Diap. É sócio-diretor da Contatos Assessoria Política.
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1 A Taxa de Sucesso do Executivo é calculada pela divisão do número de projetos enviados pelo Executivo e aprovados pelo Legislativo no ano, pelo total de projetos enviados pelo Executivo no ano. A Taxa de Dominância é calculada pela divisão do número de projetos do Executivo aprovados no ano, pelo total de projetos aprovados no ano pelo Legislativo.
2 A mudança veio a reboque da decisão do STF que determinou a análise obrigatória do veto em 30 dias, fazendo cumprir a Constituição. Para a rejeição do veto é necessária a maioria absoluta dos votos de Deputados e Senadores, computados separadamente, em votação nominal.
3 https://www.scielo.br/j/ln/a/7P5HPND88kMJCYSmX3hgrZr/
4 Os decretos presidenciais podem ser derrubados por decretos legislativo, aprovados por maioria simples.
FONTE: DIAP