O BPC é, a um só tempo, elemento essencial para redução da miséria e da fome e mecanismos de aquecimento da economia pela via da demanda
O Ministério do Desenvolvimento Social emitiu a Nota Técnica 25 (1) destacando o crescimento acentuado do número de benefícios de prestação continuada (BPC) a partir de 2022. O documento anuncia o crescimento de 12.4% de despesas reais em 2023, em parte devido à política de valorização do salário-mínimo (re)inaugurada pela Lei 14.664\23 (que prevê o reajuste do salário-mínimo indexado à inflação (INPC) mais um índice correspondente ao crescimento real do PIB de 2 anos anteriores), em parte em razão da expansão do número de beneficiários.
Tudo isso é ótimo, não? Expandir os gastos com o BPC significa garantir dignidade econômica básica a um grupo de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade ao mesmo tempo em que se injeta na economia um boom de demanda que será revertido quase integralmente em consumo. Entretanto, o que vemos como “coisa boa”, o Ministério do Desenvolvimento Social e a mídia tradicional veem como “coisa ruim”. A razão? Esse aumento impacta a santidade das “contas públicas” e “preocupa os especialistas”. A Nota Técnica do MDS afirma que “o crescimento real de 12,4% nas despesas com o BPC em 2023 tem implicações significativas para a economia, com a despesa aproximando-se de 1% do PIB. Esse aumento coloca pressão sobre o orçamento federal, especialmente considerando o novo arcabouço fiscal que limita o crescimento das despesas governamentais”.
Destaque para o Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que, como afirmei em outra oportunidade, não passa de um Teto de Gastos 2.0 (2). As pessoas insistem que, “tal como dona Lindu”, o Estado não pode gastar mais do que arrecada. Essa é uma falácia que, embora muito pegajosa, é facilmente desmontável. Entretanto, fato é que fizemos uma (péssima) escolha política, uma escolha pela implementação de um Novo Teto de Gastos. Desde sua implementação, era previsível que o governo precisaria cortar gastos que tivessem crescimento real para que as despesas pudessem permanecer dentro dos estreitos limites do teto.
E aqui entra a política. São escolhas: o governo tinha inúmeras alternativas para encaixar suas contas dentro da bizarrice do Arcabouço Fiscal, mas decidiu que vai passar um “pente fino” no BPC. Para quem não sabe, o BPC garante o pagamento de 1 salário-mínimo às pessoas com deficiência e aos idosos com mais de 65 anos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. Ou seja, estamos falando de um benefício que garante o mínimo existencial a um grupo de pessoas em grave situação de vulnerabilidade social.
O governo tenta convencer o público de que é necessário passar um pente fino no BPC para “evitar fraudes” (3). “Evitar fraudes” é um argumento de grande apelo popular, e o governo sabe disso. O problema é que os critérios de elegibilidade do BPC já são muito restritos e, a depender da instrução da chefia do INSS, os benefícios podem ser cancelados de forma um tanto discricionária. Por exemplo, o artigo 20, §3º da Lei 8.743\93 prevê que, para fazer jus ao benefício, o idoso com mais de 65 anos ou a pessoa com deficiência deve ter renda familiar mensal per capita igual ou inferior a 1/4 do salário-mínimo. Ou seja, uma família com 4 pessoas deve conviver mensalmente com o valor de 1 salário-mínimo! Como se não bastasse, o §1º do mesmo artigo considera “família” para fins legais o “requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto”. É muita gente! A depender da avaliação subjetiva mais ou menos permissiva da rede burocrática do INSS, valores que superem um pouco 1\4 do salário-mínimo per capita podem ou não ser contemplados, e do mesmo modo podem ser feitas análises mais ou menos rigorosas sobre o conceito de família. Nada disso é propriamente “fraude”, mas pura e simples política!
O gráfico a seguir demonstra variação anual do número de benefícios ano a ano.
O governo, que deveria comemorar o aumento de 11.6% novos beneficiários do BPC em 2023 como parte de uma política mais ampla de eliminação da fome e da miséria, agora procura recuar para obedecer ao evangelho da austeridade fiscal e manter a santidade das contas públicas. Nos próximos anos, o governo pretende cortar 6.4 bilhões de reais do BPC, o que equivale a eliminar 11% dos beneficiários segundo os cálculos divulgados (4). São aproximadamente 600 mil idosos e pessoas com deficiência que, do dia para noite, terão seus benefícios cancelados!
O Brasil vem apresentando boas taxas de crescimento econômico (1.4% no último trimestre) se considerarmos o padrão de crescimento mundial. Parcela da mídia externou surpresa com os resultados da economia brasileira. O jornalista da Folha Vinicius Torres Freire disse em sua coluna que os “especialistas” não sabiam a razão da elevada taxa de crescimento (5): “Nada disso estava nos prognósticos dos economistas. O crescimento do segundo trimestre deste 2024 foi muito maior do que o previsto. O crescimento de 2022 (3%) e 2023 (2,9%) foi escandalosamente maior do que o previsto (0,36% e 0,8%, respectivamente, ao final do ano anterior)”, afirmou. O colunista ainda diz que talvez “algo esteja acontecendo no miolo mais opaco da economia. Francamente, sabe-se lá o quê”.
Bem, de fato há algo acontecendo no “miolo da economia”. Mas esse miolo não é nada opaco. O PIB está crescendo fundamentalmente em função do aumento do consumo interno. O consumo das famílias e do governo cresceu 1.3% em relação ao trimestre anterior. A formação bruta de capital fixo (índice para medirmos o aumento dos investimentos) aumentou 2.1%. O setor externo atrapalhou o crescimento: as importações avançaram mais que as exportações. Ou seja, temos um crescimento econômico puxado exclusivamente pela demanda interna: redução do desemprego, aumento dos investimentos e dos gastos do governo. Rebeca Pallis, coordenadora de Contas Nacionais do IBGE, afirma que “o mercado de trabalho aquecido e as transferências governamentais estariam por trás do movimento” (6). E ela tem toda razão.
Parece claro que o aumento real do salário-mínimo, a expansão do programa bolsa-família e o aumento do número de beneficiários do BPC têm muito a contribuir com o crescimento acelerado do PIB. E não há nada “opaco” nisso. Afinal, pessoas de baixa renda possuem alta propensão a consumir, termo keynesiano que significa que quanto menor o salário, maior a taxa de consumo e menor a taxa de poupança. Ou seja, a quase integralidade do BPC é revertida em consumo, fato que gera efeitos multiplicadores que aquecem a economia, incentivando novos investimentos, que por sua vez incentivam novas contratações (redução do desemprego) e por assim em diante.
O BPC é, a um só tempo, elemento essencial para redução da miséria e da fome e mecanismos de aquecimento da economia pela via da demanda interna. Mas o que vemos com bons olhos a Nota Técnica do MDS vê como problema para as “contas públicas”. Ao final, a nota sugere a desvinculação do BPC ao salário-mínimo, a revisão dos critérios de elegibilidade e o “combate à fraude e revisão cadastral”. A desvinculação do BPC ao salário-mínimo é uma recomendação particularmente asquerosa que criaria um grupo de sub-humanos que poderiam receber menos que o salário-mínimo! A medida criaria uma dicotomia que merece os piores adjetivos imagináveis: de um lado, a salário-mínimo teria reajuste pelo INPC + Um índice de crescimento do PIB; de outro, o BPC manteria apenas o reajuste inflacionário, perdendo valor real em relação ao salário-mínimo (que, como seu nome diz, já é “mínimo”). Trata-se de nítida medida discriminatória contra os mais miseráveis dentre os idosos e pessoas com deficiência. Tudo em nome das “contas públicas”. Essas são as vítimas da austeridade fiscal. Se a ideia era “colocar o pobre no orçamento”, os cortes no BPC farão o exato oposto.
Se quisesse tanto manter o resultado fiscal dentro do limite do Novo Teto de Gastos, o governo teria uma porção de alternativas. Poderia atacar tanto o lado das despesas quanto o lado das receitas. Pelo lado das despesas, poderia propor mudanças nas aposentadorias militares ou trabalhar pelo fim de isenções fiscais, muitas delas perniciosas. Pelo lado das receitas, que de fato implementar impostos sobre grandes fortunas, cujos cálculos estimam a arrecadação anual de 40 bilhões de reais (e não me venham com o falacioso argumento da fuga de capitais, pois a tributação se dá sobre o patrimônio, não sobre a renda) (7)?
A verdade é que a histórica “vista grossa” sobre as benesses tributárias da burguesia brasileira tem levado aos “pentes finos” nos gastos públicos destinados às camadas mais pobres. Os cortes sempre se direcionam aos de baixo enquanto aos opulentos patrimônios da burguesia é feita vista grossa. Tem sido assim desde que a preocupação insana com as contas públicas se tornou a ideologia oficial. “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”, já disseram Marx e Engels n’A Ideologia Alemã (8). A passagem é tão famosa que se tornou clichê, mas às vezes é preciso relembrar: a austeridade fiscal é um conjunto de ideias (com enorme força material) a serviço das classes dominantes que introduz um artifício mental falso (a “necessidade” de equilíbrio das contas públicas) para evitar incursões tributárias do Estado no patrimônio e na renda dos mais ricos. Quando as “contas apertam”, o pente fino é direcionado as camadas mais pobres. A elevação da taxa básica de juros continua garantindo ao capital o poder de regular seu próprio rendimento, fato que alimenta uma bolha financeira que há muito perdeu contato com a economia real. As vítimas da vez são os beneficiários do BPC, e o que espanta é que a tesoura vem de um governo cuja promessa de campanha foi “colocar o pobre no orçamento”.
“Cada dia me torno mais cega, porque não tenho quem me veja” (9), disse a personagem de Saramago. As lutas de classes produzem uma dupla invisibilidade: de um lado, a invisibilidade materializada como um desprezo olímpico pelos milhares de destinatários invisíveis do BPC, próximas vítimas do “pente fino” da austeridade. De outro, a invisibilidade proposital da “vista grossa”, daqueles cuja riqueza é grande demais para ser alcançada pelos “pentes finos”. E é assim, com a naturalização da austeridade fiscal e do sistema capitalista, que seguimos sem enxergar nada.
REFERÊNCIAS
1 – Disponível em: https://www.gov.br/fundaj/ptbr/composicao/dipes1/publicacoes/NOTATCNICA25OBPCPANORAMAATUAL1.pdf. Acesso em: 22.09.2024
2 – Sobre esse ponto, escrevi uma crítica ao Novo Arcabouço Fiscal disponível em: https://jornalggn.com.br/opiniao/austeridade-fiscal-versus-direitos-humanos-por-gustavo-livio/
3 – Disponível em: https://oglobo.globo.com/patrocinado/dino/noticia/2024/08/22/inss-da-inicio-ao-chamado-pente-fino-do-bpc.ghtml. Acesso em 20.09.2024.
4 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/08/governo-lula-preve-cortar-11-a-cada-100-beneficios-em-pente-fino-do-bpc.shtml. Acesso em 22.09.2024.
5 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2024/09/economia-tem-melhor-trienio-desde-2013-e-mal-sabemos-o-motivo-da-melhora.shtml. Acesso em: 22.09.2024.
6 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/09/consumo-das-familias-do-governo-e-investimento-puxam-pib-do-2o-trimestre.shtml. Acesso em: 22.09.2024
7 – Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/09/07/imposto-sobre-grandes-fortunas-tributo-pode-render-r-40-bilhoes-ao-pais. Acesso em: 22.09.2024
8 – MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 44.
9 – SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 301.
Gustavo Livio – Mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia. Promotor de Justiça do MPRJ. Integrante do Coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.
FONTE: JORNAL GGN