A proposta protocolada por Eduardo Cunha em 2012 visa alterar a Constituição para garantir a inviolabilidade da vida “desde a concepção”
A PEC 164/2012 aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados no dia 27 de novembro não é, em si, uma novidade. Não apenas por ser de 2012 e de autoria do então deputado Eduardo Cunha. Ou por ter conteúdo semelhante ao dos chamados Estatutos do Nascituro, que vêm tramitando desde 2007 na forma de PLs – parentes menos ambiciosos da PEC, portanto, uma vez que esta última modificaria a Constituição para punir mulheres que realizam aborto em circunstâncias hoje previstas na legislação brasileira.
Faz quase 20 anos que a estratégia do ativismo contrário ao direito ao aborto é retroceder em relação ao Código Penal de 1940. Seus proponentes desejam que meninas e mulheres tenham que levar a cabo gestações resultantes de estupro e que mulheres que correm risco de vida em gestações que provocam seu adoecimento sejam deixadas à própria sorte. De brinde, querem anular a decisão do STF de 2012, que permite o aborto quando não há possibilidade de vida do feto fora do útero, como no caso da anencefalia fetal. Caso isso aconteça, as mulheres seriam obrigadas pelo Estado a manter até o fim uma gestação sem esperança de vida para o feto e com riscos de adoecimento e morte para elas próprias, sem falar nas implicações psíquicas de uma situação tão trágica.
Apesar disso, há fatores que são peculiares à aprovação da PEC na CCJ. E elas são importantes para que possamos analisar a conjuntura atual, levando em conta os riscos que representa para direitos fundamentais. Destaco alguns deles:
É comum a análise de que o Congresso se tornou mais conservador. Mas o que temos visto, de fato, é um Congresso que se radicalizou na contramão de direitos estabelecidos. Para quem articulou a votação e votou a favor da PEC, o objetivo não é conservar, mas retroceder na legislação existente. As parlamentares que hoje lideram a CCJ foram eleitas pelo PL e são radicais na mobilização de suas crenças religiosas na cena pública. Uma delas se diz católica, a outra se diz cristã, alcunha comumente usada por evangélicos, mas casou-se recentemente em uma igreja católica. Para elas, a pauta do aborto não é distração, mas algo central à sua plataforma e para o seu ativismo político. Como tem sido comum nesse ativismo, têm formação em direito e fazem parte de redes de ativismo em que juristas têm peso importante. Nisso, aproximam-se de protagonistas dessa pauta no governo Bolsonaro, como Angela Gandra.
O presidente atual da Câmara, assim como o deputado que deve sucedê-lo no próximo ano, não têm compromissos com os direitos das mulheres. Pode-se dizer que também não são intensamente interessados no seu retrocesso, como era Eduardo Cunha, que além de autor do projeto presidiu a casa entre fevereiro de 2015 e julho de 2016. Isso significa que o contexto político importa mais do que as convicções desses parlamentares. Hoje, apostaria que não têm interesse em levar a PEC a votação no Plenário da Câmara, mas isso pode mudar.
É comum que radicais contra os direitos das mulheres digam que estão com a maioria. A noção de maioria cristã tem, aliás, sido uma estratégia política importante – e frequentemente sem respaldo. Temos bases políticas e jurídicas para diferenciar direitos fundamentais da opinião de maiorias. Mas aqui é importante destacar que quem votou para proibir o aborto em qualquer circunstância está em dissonância com o que pensa a maior parte dos brasileiros. Segundo dados do Datafolha, 58% são contra a proibição das mulheres em qualquer circunstância. Dados da pesquisa A Cara da Democracia confirmam essa orientação mais moderada: são também 58% aqueles que se manifestam contra a prisão de mulheres que abortaram. Se é assim, há espaço para que defensoras dos direitos humanos e das mulheres dialoguem com parlamentares de diferentes partidos, mostrando que a radicalização da extrema-direita se choca com o que pensa a maior parte da população. Mas há também riscos de que as mais radicais coloquem em circulação narrativas que acabem por alterar o balanço hoje existente.
Menos relevante para o resultado, mas significativo para discussões sobre a eleição de mulheres, a votação na CCJ vai na mesma direção de um argumento que defendo há muitos anos. Não basta eleger mulheres, uma vez que elas também podem operar contra direitos. Mas um Congresso com ampla maioria masculina amplia os riscos para os direitos das mulheres. É verdade que duas mulheres de extrema-direita foram fundamentais para essa votação. Mas se olhamos o relatório dos votos, entendemos que as únicas pessoas de direita que votaram contra a PEC do estupro são mulheres. Em seus partidos, que são União Brasil, PSD e MDB, todos os homens votaram a favor da PEC. Por outro lado, a única pessoa de esquerda, do PT no caso, que votou a favor da PEC, é um homem (de 71 anos, médico e católico).
Esses fatores, penso, colaboram para análises da conjuntura que abandonem visões reducionistas do que está em jogo quando a extrema-direita avança e retrocessos democráticos são normalizados. As disputas em torno do gênero, e especificamente dos corpos das mulheres, estão no coração de plataformas autoritárias. Não é preciso olhar para El Salvador ou para os Estados Unidos para compreender isso.
Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em coautoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014) e com Maria das Dores Campos Machado, Juan Marco Vaggione, Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina (Boitempo, 2020).
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FONTE: JORNAL GGN