Desmando na educação não é crise, é projeto. E professorado é o alvo

O Dia dos Professores é dia de levantarmo-nos por formação, valorização, condições dignas de trabalho e de carreira. Dia de reafirmarmo-nos não objetos, mas sujeitos da História

Dia 15 de outubro é o Dia das Professoras e dos Professores. Basta uma busca rápida no Google, para ler homenagens com frases como “quem compartilha o que sabe muda a história de quem aprende”, “educar é um ato de coragem e amor”, “professores ajudam a transformar o mundo”, “heróis de verdade não vestem capa, ensinam”. Essas frases mostram a percepção da importância dessa profissão para a nossa sociedade. Basta, contudo, uma busca em jornais, revistas, nas redes sociais e – pasmem! – em relatórios de organizações nacionais e internacionais que fazem monitoramento dos indicadores da educação, para ver, repetidamente, diagnósticos que responsabilizam esses mesmos profissionais por maus resultados em avaliações em larga escala.

Neste dia, é preciso reafirmar: nem herói, nem culpado, professor tem que ser valorizado. Infelizmente, é de palavras e promessas bonitas – e só – que vive a profissão docente no país. Os dados de monitoramento do Plano Nacional de Educação (PNE), previsto pela Lei 13.005/2014, demonstram isso.

A meta 15 do PNE determina que, até 2015, era preciso garantir política nacional de formação dos profissionais da educação, assegurado que todos os professores e as professoras da educação básica possuíssem formação específica de nível superior. Em nenhuma das etapas da educação básica o avanço no percentual de docências com formação adequada tem sido rápido o suficiente para que se atinja até 2024 o nível estipulado no plano.

Para piorar, a política que tem tomado lugar do PNE como espinha dorsal para a educação brasileira tem sido a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e suas políticas subjacentes, conteudistas e de padronização do ensino que contribuem pouco para a educação voltada à formação plena do ser humano. Ainda, a Política Nacional de Formação de Professores tem vinculação direta à BNCC ferindo a autonomia e liberdade de cátedra, ao induzir projetos institucionais de formação que destoam das concepções de formação docente presentes nos seus próprios projetos pedagógicos.

Outro retrocesso imenso tem sido provocado por políticas de privatização da educação, entre elas, a de comercialização de cursos de educação à distância. Tal processo de construção da BNCC quanto de suas políticas adjacentes que tocam a formação docente viola ao menos quatro dos dez artigos gerais dos Princípios de Abidjan sobre as obrigações de direitos humanos aos Estados em fornecer educação pública e regular o envolvimento privado na educação.

A meta 16 do Plano determina que era preciso, até 2020, valorizar os profissionais do magistério das redes públicas de educação básica de forma a equiparar seu rendimento médio ao dos demais profissionais com escolaridade equivalente, o que também não foi cumprido e, pior, tem avançado cerca de um terço do ritmo necessário para seu cumprimento. Hoje, a remuneração da categoria é 81,1% do rendimento dos profissionais com a mesma escolaridade e a tendência é que cheguemos ao final de vigência do PNE, em 2024, distantes dessa equiparação. A ausência de um salário digno é um dos principais, senão o principal, indicador da desvalorização da carreira docente e a reversão desse quadro é fundamental para que a carreira tenha maior atratividade.

Assegurar até 2016 a existência de planos de carreira para profissionais da educação básica e superior pública de todos os sistemas de ensino e tomar como referência o piso salarial nacional profissional é a meta 18 do PNE. Hoje, cinco anos depois do prazo, cumprem todos os requisitos dessa meta somente 52% dos estados e 24% dos municípios. Ainda, ao avaliar a série de tempo do indicador relativo ao tipo de contrato do professor, percebe-se uma tendência preocupante: diminuição do número de professores concursados (efetivos/estáveis) e aumento de contratos que não estão vinculados aos planos de carreira.

Infelizmente, esse cenário é somente o efeito dos cortes e políticas de desfinanciamento da educação dos últimos anos e ainda não compreende a piora que pode vir a acontecer. Estudo lançado nesta semana pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e pela ActionAid, sob o título que retoma a tese de Darcy Ribeiro “Não é uma crise, é um projeto: os efeitos das Reformas do Estado entre 2016 e 2021 na educação” traz dados alarmantes sobre o futuro da profissão docente no país, diante das reformas que têm impactado os direitos sociais e serviços públicos no país.

A análise das medidas de austeridade e das reformas trabalhista, tributária e administrativa – proposta pela famigerada PEC 32/2020, em tramitação no Congresso Nacional – revela que elas reforçarão as desigualdades estruturais, na contramão da necessidade de aumento de financiamento para garantia de direitos sociais. Faz anos que estamos denunciando e atuando sistematicamente contra essa série de reformas e esse estudo vem coadunar com esse trabalho, mostrando em detalhe como se trata de uma agenda ampla, combinada e complementar de reformas que se chocam com os preceitos constitucionais de direitos e pretendem deformar o Estado.

O golpe está em curso. E, pior, é uma agenda falida, tanto para os direitos humanos quanto para a economia

Dentre os impactos de tais reformas para a educação, aqueles para o professorado são os mais recorrentes. A reforma administrativa (PEC 32), por exemplo, pode atingir diretamente as e os servidores na perda da estabilidade, na proteção e garantia de direitos, na progressão da carreira, nas formas de contratação e no regime previdenciário e sindical. A precarização das condições de trabalho também apresenta riscos à prática pedagógica e, inclusive, à liberdade de cátedra.

Alguns dos argumentos apresentados no estudo desbancam parte do discurso de corte de gastos públicos e das reformas, especialmente a administrativa. O principal deles, de que o Estado brasileiro é inchado, não se sustenta. No setor público, o percentual de vínculos se mantém estável em torno de 5,8% desde 2012. Portanto, “é incorreto afirmar que houve uma explosão do serviço público brasileiro nos últimos anos, pois a grande maioria dos empregos gerados no Brasil está no setor privado”, conclui.

Ao contrário do que a agenda reformista afirma, a expansão da capacidade de atendimento do Estado brasileiro se deu através de vínculos públicos com ensino superior completo que, entre 1986 e 2017, cresceu de pouco mais de 9 mil para 5,3 milhões. Trata-se, portanto, de trabalhadores e trabalhadoras com alto grau de escolarização. Apesar do aumento da escolarização, a média real salarial no serviço público municipal teve aumento médio real de 1,1% ao ano no mesmo período, passando de R$ 2.000 para R$ 2.800. Cerca de 60% das e dos funcionários públicos do Brasil são do âmbito municipal.

Menor salário entre 40 países da OCDE

Os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a título de comparação, gastam 2,2 vezes mais que o Brasil com servidores. Em relação ao gasto per capita em saúde e educação, o investimento brasileiro também é muito inferior, inclusive em relação aos demais países emergentes. Edição de 2021 do relatório Education at Glance mostra que professores dos anos finais do ensino fundamental têm o menor salário inicial (US$ 13,9 mil anuais) entre os 40 países analisados. A média nos países membros e parceiros da OCDE analisados é de US$ 35,6 mil.

O estudo demonstra que as medidas estudadas não promoveram crescimento econômico, geração de emprego e distribuição de renda e, em relação ao funcionalismo público, pavimentam, entre outros ataques, a redução salarial, a diminuição da jornada de trabalho e a precarização das condições de trabalho, atingindo, na ponta, a garantia do atendimento à população, o que se torna ainda mais grave num contexto de pandemia.

O resultado é o aprofundamento das múltiplas desigualdades que estruturam a sociedade brasileira e que atingem, com mais intensidade, as populações historicamente vulnerabilizadas, como a população negra e as mulheres. Está em curso, portanto, um projeto de desmonte do Estado brasileiro, colocando em risco direitos historicamente conquistados, entre eles, o direito à educação. E, no centro dessa crise, está o professor.

Professores e professoras comprometidos

Hoje é dia de comemorar por termos professoras e professores verdadeiramente comprometidos com a tarefa que assumiram de serem mais que missionários, mais que técnicos, mais que meros professores, mais que um produto do cenário grotesco que recai sobre eles, mas se serem militantes. Militantes no sentido político, como dizia Freire, ou seja, ativistas críticos.

Hoje é dia, especialmente, de se aliar à luta dos professores por formação, por valorização, condições dignas de trabalho e de carreira. O desrespeito às condições para o exercício da docência é uma ofensa aos educadores, aos educandos e à prática pedagógica.

“O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser objeto, mas sujeito da História” (Paulo Freire, 1996). Um grande dia de luta para todas e todos nós, educadoras e educadores do Brasil, sejamos sujeitos da História.

Andressa Pellanda é coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cientista política, educadora, comunicóloga e doutoranda em ciências (IRI/USP).

Fonte: RBA